Universidade de Brasília, Junho de 2005

Departamento de Filosofia

Disciplina: Tópicos Especiais de Teoria da Ciência

Professor: Wilton Barroso Filho



A ESTRUTURA DA

REVOLUÇÃO

BIOLÓGICA

Uma análise da controvérsia CRIAÇÃO X EVOLUÇÃO

sob a luz da Filosofia da Ciência de Thomas S. Kuhn



Marcus Valerio XR

Graduando em Filosofia

Matrícula:02/98255

w w w . x r . p r o . b r

w w w . e v o . b i o . b r


INTRODUÇÃO

Há 7 anos me dedico à questão do movimento Criacionista e sua investida contra a idéia de Evolução Biológica, fazendo uma defesa do pensamento evolutivo em debates pessoais e na internet, em especial por meio de meu site www.evo.bio.br.
Como sempre insisto em dizer, os melhores momentos do debate em geral ocorrem no campo filosófico, em especial na questão da demarcação entre a Ciência e a Não-Ciência, nas implicações positivistas da História da Ciência e naquilo que chamo de Paradigmas Científicos.
É exatamente neste último conceito, por mim usado amplamente, que encontrei grande sintonia com o pensamento de Thomas S. Kuhn, que em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, faz uma análise de como se dá o desenvolvimento sócio-cultural da Ciência. Com base nesta obra, o objetivo deste trabalho é fazer uma leitura kuhniana da questão Criacionismo e Evolucionismo, com especial ênfase na atualidade, onde os Criacionistas cada vez mais procuram se articular com maior cientificidade, sem dúvida almejando alcançar um estatuto de respeitabilidade acadêmica, e “concorrer” com o fortemente estabelecido paradigma Evolucionista.
Dessa forma, pretendo desenvolver o texto na seguinte estrutura:
Na Primeira Parte promoverei uma explanação sobre o problema das origens, do Criacionismo e do Evolucionismo, sua história e situação atual, com um enfoque diferenciado do que já tenho desenvolvido, antecipando o porquê da adequação da teoria Kunhiana ao assunto.
Para uma Segunda Parte é necessária uma resenha sobre a obra “A Estrutura das Revoluções científicas”, suas principais idéias e conceitos. Tentarei tornar este trabalho o mais independente possível da leitura prévia de Kuhn, mesmo porque muitas de suas idéias não são de difícil assimilação. É claro, porém, que o leitor familiarizado com Kuhn terá vantagens.
Como Terceira Parte argumentarei como vejo os movimentos Criacionistas se comportando, sob a luz de Kuhn. Quais as características que eles apresentam e como eles provavelmente se articularão, ou se articulariam, na busca de uma maior respeitabilidade científica, e como isso pode interagir com o paradigma Evolucionista. Neste momento, desenvolverei alguns pontos fundamentais:

- A unicidade do paradigma Evolucionista na Ciência, e por que este se distingue dos demais paradigmas científicos.

- A insofismável essência religiosa do movimento Criacionista.

- A possível essência secular do movimento Evolucionista Teísta do Design Inteligente.

- A conquista de algum reconhecimento como ciência pelo Criacionismo deve necessariamente afastá-lo ao máximo de sua religiosidade. O que até agora não ocorreu.

- A investida criacionista, apesar de uma série de fatores de tensão, pode contribuir beneficamente para o paradigma evolucionista e científico em geral.

- As alegadas crises que ocorrem no paradigma evolucionista podem ser vistas em sentido kuhniano e significam momentos de adaptação do próprio paradigma a novas descobertas.

- Se possível articular um paradigma alternativo ao Evolucionista, este dificilmente seria interessante para os interesses originais do Criacionismo, se não totalmente prejudicial.

Na Parte Final pretendo analisar algumas implicações éticas deste movimento, tanto por parte da comunidade científica quanto religiosa, seu alcance na esfera pública, em especial educacional, e como ele se encaixa no nosso momento histórico. Será de especial interesse o modo como relações entre o paradigma evolucionista e um possível paradigma, ou “semi-paradigma” criacionista ou evolucionista alternativo, podem levar questões bioéticas para tendências divergentes.

Essa monografia vem a preencher uma considerável lacuna em meu histórico pessoal, pois há anos venho trabalhando com a questão do Criacionismo, e paralelamente com dissertações universitárias de temas filosóficos diversos, que podem ser conferidos em meu site original www.xr.pro.br/monografias.html. No entanto, tais produções jamais haviam antes se encontrado. Será esta a primeira vez que tratarei da polêmica Criação X Evolução num texto acadêmico.
Evidentemente seu destino certo será a publicação em ambos os meus sites, acrescentando ainda mais subsídios a uma análise crítica da questão, e espero, contribuindo para o esclarecimento de que o problema não é exatamente um choque de paradigmas científicos, mas antes de tudo de comunidades cujas linhas de demarcação são por vezes difíceis de distinguir, havendo excessos de ambos os lados. E quem sabe, servindo para auxiliar a manutenção do bom senso em nossa sociedade.



Marcus Valerio XR

Junho de 2005

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO
ÍNDICE
CRIAÇÃO X EVOLUÇÃO
Notas 1 a 5
A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS
A CONTRA REVOLUÇÃO BIOLÓGICA
Notas 6 a 20
EVOLUÇÃO ÉTICA E REVOLUÇÃO BIOÉTICA

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CRIAÇÃO X EVOLUÇÃO

Fazer um “resumo” da questão que me proponho a analisar me é, curiosamente, menos comum do que muitos podem pensar. Em geral aqueles que vem a meu site já conhecem o problema e quase sempre já tem uma opinião formada. E não há muito, se não nenhum, interesse por parte daqueles que não estejam diretamente envolvidos profissional, religiosa ou filosoficamente. Assim fornecerei uma explanação em parte diferente da que pode ser encontrada em meu site, mesmo porque embora fundamentalmente simples, seja uma questão de complexas implicações.
Considero natural ao Ser Humano o questionamento sobre quase tudo, incluindo sua origem. Querer saber de onde veio “A Vida o Universo e Tudo o Mais” é intrínseco à nossa racionalidade, e dessa forma as questões fundamentais por trás das linhas de pensamento que se contrastam nesta monografia é a mesma. O que nós somos? De onde viemos? O que é e de onde veio o mundo?
Ao longo da história podemos distinguir 4 grandes tradições de respostas. A mais antiga é MITOLÓGICA, onipresente em todas as culturas humanas conhecidas e cuja principal característica, em minha opinião, é expressar em mitos e lendas os conteúdos simbólicos íntimos de nossa própria personalidade. Nossos deuses são nós mesmos, nossas gêneses são nossos limites gnosiológicos, nossas esperanças de uma superação da existência terrena são nossa resposta à incômoda perspectiva de inexistência futura. (Ou talvez não. Mas se assim não for, o problema pode ser entendido da mesma forma, visto que meramente se daria no sentido oposto). Com os mitos respondemos a todas as grandes questões, as que realmente importam. No entanto, nada garante a validade destas respostas.
A Segunda tradição é FILOSÓFICA. Tanto na Grécia Clássica quanto na Índia e na China, correntes de pensamento emergiram com novos métodos de resposta, caracterizados principalmente pela racionalidade e tentativa de reduzir a realidade percebida a uma estrutura fundamental.
A Terceira tradição é TEOLÓGICA. No oriente ela se confunde com a Filosófica, mas no ocidente a Revelação Bíblica se tornou a referência absoluta para todo e qualquer tipo de conhecimento, no entanto, bem menos ingênua e mais sofisticada que os velhos mitos. Pode-se entender então que há uma fusão da Mitologia com a Filosofia, gerando não exatamente novas, mas sintéticas e modernizadas respostas às questões fundamentais.
Finalmente entramos na tardia tradição CIENTÍFICA, onde gradativamente houve o desvencilhamento do Mitológico, quer em forma pura ou em forma Teológica, bem como de grande parte do Filosófico, submetendo a racionalidade às evidências empíricas e a matematização.
Na atualidade, temos uma visão da origem do Universo, das espécies e de nós mesmos que foi construída em sólidos alicerces evidenciais, embora ainda sujeitos a todas as dificuldades que a investigação da Natureza nos oferece. A tradição mais recente da humanidade superou suas anteriores principalmente pelos resultados concretos que apresentou, em especial os tecnológicos.
No entanto as antigas tradições jamais morreram, elas são mantidas vivas pelos mais variados motivos, mas na maioria dos casos elas não pretendem disputar espaço com o pensamento científico nos locais onde este tem a hegemonia. Feiticeiros, Gurus e Xamãs podem contar suas preciosas lendas, repletas de significados, a seus fiéis seguidores, mas não se lançam a tentar convencer o restante do mundo. Pensadores e Místicos à moda antiga podem ter suas próprias gêneses, mas costumam estar restritas aos seus grupos de iniciados e sociedades secretas.

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O movimento conhecido como CRIACIONISMO tem sido uma notável exceção. Talvez por ser um membro da tradição mais recente, ainda se recusa a aceitar seu destronamento como visão referencial. Baseado no peso da tradição religiosa que foi dominante no ocidente por mais de mil anos, talvez nada ou pouco mais faça do que seu papel de saudoso inconformado, que seguramente ocorreu aos mitômanos que conviverem com os antigos Filósofos gregos, bem como aos helênicos que coexistiram com os primórdios da hegemonia cristã. É natural de qualquer tradição humana resistir, tentar garantir seu local.
O monumental avanço da Ciência, por mais avassalador que tenha sido, não foi capaz de preencher os vazios existenciais típicos causados pelas fundamentais dúvidas e angústias humanas. Por ter se restringido ao único plano possível de abordagem objetiva, o Material, o plano Espiritual desde Descartes emancipado foi em grande parte poupado da investida, correndo paralelamente ao longo da recente história.
Na maioria dos casos a convivência é, se não harmoniosa, ao menos pacífica, mas uma série de fatores paralelos a tudo isto contribuem para tornar nossas vidas mais ou menos conturbadas, e é fato inegável a impotência da Ciência para curar o sofrimento humano que não tenha causas físicas imediatas, diretas e isoladas. A Religião continua desempenhando papel fundamental na manutenção da saúde mental humana, quer seja na acepção de “remédio”, “alimento” ou “ópio”, e algumas delas possuem notáveis efeitos colaterais.
Uma delas é o Fundamentalismo, que acompanha certos “bálsamos” psicológicos de grande força em moldar visões de mundos e comportamentos. É como se os benefícios só fossem efetivos caso os efeitos se apliquem largamente em todos os “setores” da experiência humana. E assim, os valores humanos diretamente tocáveis pela espiritualidade humana parecem abrir passagem para tocar os aspectos mais densos, materiais. Em termos Cartesianos, é como se a “barreira” entre o Material e o Espiritual houvesse sido derrubada, e os domínios de uma das Substâncias começassem a ser afetados pelo da outra.
Entretanto, este fato ocorre não só no sentido Espiritual-Material, mas também no Material-Espiritual, e creio que seja exatamente esse o ponto fundamental. Uma vez que parece impossível negar a dimensão da espiritualidade humana, quer ela se refira a algum tipo de realidade ou não, a postura de se respeitar a divisão de “competências” preconizada por Descartes sobressai com grande apelo e mesmo justiça. A passagem de um lado para outro, quando não fortemente apoiada por conteúdos inegáveis, sempre soa como uma violação de um implícito pacto de não agressão entre os domínios das duas grandes facetas da experiência humana, a Objetiva e a Subjetiva.
De fato a tradição Mitológica e a Teológica compartilham elementos psíquicos humanos que são parte integrante e concreta de nossa natureza. E a tradição Filosófica e Científica também o fazem, mas por um outro lado. Se Ciência e Mitologia parecem estar em lados opostos do universo cultural, ocorre que todas as relações, amigáveis ou não, terminem por se articular naquilo que haja de comum entre elas. A intrínseca racionalidade compartilhada tanto pela Ciência quanto Teologia, evidentemente: A Filosofia.
É por isso que uma de minhas afirmações fundamentais é que o fenômeno cultural CRIACIONISMO X EVOLUCIONISMO só é devidamente administrável do ponto de vista filosófico. A abordagem científica parece completamente inadequada, a religiosa também, dependendo do enfoque e ponto de partida. O “Cientista”, enquanto restrito ao domínio do “Científico”, fica tão desorientado com a questão que não é de se admirar que a quase totalidade do profissionais da área não gaste sequer um segundo de seu tempo com a mesma. O mesmo ocorre com o Religioso enquanto restrito ao “Religioso”.

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Então de ambos os lados partem iniciativas de abordar o lado oposto, mas tais iniciativas só são possíveis, mesmo concebíveis, pela “Terra de Ninguém Russelliana”1, a Filosofia. Porém estamos numa era da “Ciência”, desta grande vedete e menina dos olhos da cultura humana. Ambas as iniciativas clamam para si o estatuto exclusivo de cientificidade necessário para se fazer ouvir com alguma respeitabilidade.
A posição final à qual quero chegar é a afirmação que o domínio da Ciência, o mundo Natural, é completamente inadequado para fazer afirmações sobre o que é domínio da Religião, o mundo Psicológico, ou se preferir, Espiritual. A Ciência não tem elementos para fazer qualquer afirmação válida sobre a existência de Deus, sobre a transcendência da vida terrena ou um possível outro mundo, e qualquer investida nesse sentido, além de fadada ao fracasso, é uma autêntica impostura intelectual.
A Religião por sua vez não tem nenhuma condição para fazer afirmações de ordem puramente natural, e iniciativas nesse sentido, principalmente na contemporaneidade, estarão fadadas ao ridículo.
Somente a Filosofia está parcialmente habilitada para abordar os dois campos, desde que jamais abandone a honestidade intelectual em expor sua principal limitação: Sua incapacidade de solucionar definitivamente qualquer questão.
O que ocorreu é que investidas filosóficas travestidas de científicas se pronunciaram contra conceitos que não dizem respeito a Ciência. O Positivismo da virada dos séculos XIX e XX nos oferece muitos exemplos disto. Pressupôs-se o fim da Religião, supôs-se a explicação completa do comportamento humano individual e social com base em pura materialidade redutiva, sem sequer os recursos bem mais sofisticados da atualidade. E de fato muitos cientistas e reducionistas acreditam poder se pronunciar contra conceitos clássicos do imaginário humano como se estes fossem fisicamente isoláveis.
Deu-se posteriormente o fenômeno contrário. Religiosos se mobilizaram tentando invalidar tais investidas, mas cometendo o erro de confundirem a natureza destas e dirigindo seus esforços contra as fontes erradas. Pior, ainda acrescentaram uma série de conceitos na imagem de seus adversários que originalmente não fazem parte dos mesmos.
Em geral eu costumava classificar o Criacionismo como uma mera APOLOGÉTICA FUNDAMENTALISTA da Teologia baseada na Mitologia Hebraica da Gênese, e de fato, pretendo continuar a classificá-lo assim. Mas neste texto pretendo trazer uma dimensão diferente, totalmente inédita em todo o meu histórico sobre a questão, e em todo o meu site.
Pretendo aqui examinar o Criacionismo não como um tipo de extrapolação teológica em direção a um âmbito que não deveria lhe dizer diretamente respeito, mas como uma reação a uma extrapolação filosófica travestida de ciência que se pronunciou indevidamente sobre conceitos que também não deveriam lhe dizer respeito, e para isso, a Filosofia de Kuhn é de grande fecundidade.
Nada disso porém me exime de explanar brevemente sobre o Criacionismo do modo que sempre fiz. Como classifiquei em meu texto on-line “3 Tipos Básicos de Criacionismos”2, podemos entender que a fonte primordial é sem dúvida de origem Mitológica, e nesse sentido, a maior parte da humanidade é criacionista, visto que compartilha de visões mítico e religiosas que pressupõe uma origem divina do Universo e dos Humanos. Este nível porém costuma operar num Universo simbólico inócuo ao Universo Secular, Científico, Acadêmico e Educacional.
Num Segundo Nível, o criacionismo se articula Teologicamente, lançando mão da Filosofia, mas em geral respeita os demais domínios do conhecimento. 3 É seguro observar que a maioria dos cientistas que protagonizaram a revolução científica, incluindo a Biológica, eram criacionistas neste nível, visto que mantiveram grande parte de suas convicções religiosas, porém num domínio discriminado do científico. Interessante notar também que mesmo na atualidade, não só a maioria da população mundial, mas mesmo a maioria dos cientistas, conversa seus valores religiosos, e sendo a maioria deles partidários de identidades religiosas adeptas de gêneses mitológicas, são ainda em algum nível simbólico, “espiritualmente criacionistas”. Dessa forma, muitos dos valores éticos e estéticos continuam sendo religiosamente embasados, e idéia de que somos de um modo ou de outro descendentes de uma divindade, ou que temos uma centelha divina, ainda é predominante.

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Mas o nível que nos interessa aqui, o Criacionismo com “C” maiúsculo, é o auto entitulado Criacionismo “Científico”. Uma abordagem Teológica e Filosófica de coerência menos desenvolvida que abordagens mais tradicionais restritas ao segundo nível, como a postura oficial do Catolicismo sobre a questão. Tal abordagem no entanto se pronuncia como cientificamente válida e devidamente embasada, e em geral se apresentando como partindo mesmo de uma Ciência de Vanguarda, ou de uma Ciência “Verdadeira” que não se submeteu a uma ideologia Naturalista de fundamentação puramente filosófica que se impôs como científica.
Quero destacar então a última parte desta afirmação. Os Criacionistas acusam o pensamento Evolucionista de não ser de fato uma articulação científica, mas uma ideologia filosófica de intenções anti-religiosas, ou especificamente anti-cristãs, para não chegarmos ao extremo de afirmar anti‑divinas ou mesmo demoníacas. Ao meu ver, é aqui que está o dado interessante, pois se tal posição é simplesmente insustentável, não se pode negar ocasionais investidas pseudo-científicas contra a religiosidade.
Mas esse Criacionismo não se resume a isso. Ele é sim uma tentativa da ortodoxia religiosa em reconquistar um espaço privilegiado perdido desde o século XIX, e também um produto direto do Fundamentalismo Cristão e seus Princípios de Fé erigidos nesta mesma época numa reação ao Liberalismo Cristão. 4 Tal postura não pretende ceder qualquer espaço para qualquer outra forma de pensamento, e irá utilizar todos os recursos possíveis para aquilo que costumam considerar como uma autêntica Cruzada Santa pela palavra de Deus.
Os pomos da discórdia serão exatamente aqueles onde uma afirmação da Gênese, se interpretada literalmente, seja diretamente contrariada por um conceito científico, e então baseados no conceito de Inerrância Bíblica, que os garante que tal visão científica só pode estar errada,  modelam o mesmo ponto de vista religioso com uma roupagem cientificista, a afirmam estar não pregando uma religião, mas promovendo uma nova abordagem científica.
Até há pouco o movimento tem tido grande sucesso entre seu público religioso cativo, o que evidentemente fez pouco diferença visto que tal público, independentemente de cientificidade ou não, já estava comprometido com a versão religiosa. No entanto tem ocorrido cada vez mais uma extrapolação para âmbitos seculares e originalmente públicos e laicos.
É inevitável perceber que o recente aumento de identidades “Protestantes” é diretamente proporcional ao espalhamento do Criacionismo, que até agora só conseguiu se expandir como parte integrante de sua ortodoxia religiosa, porém quanto maior a onda de “evangelização” da sociedade, maior tende a ser não apenas a amplitude do Criacionismo dentro da comunidade religiosa, mas também seu transbordamento para fora dela, e isso se tempera pela cada vez maior articulação cientificista.
Finalmente o Criacionismo se aliou a outras tendências afins, embora originalmente distintas, como o movimento do Design Inteligente. 5 Uma postura filosófica que resgata o Deísmo ao estilo do argumento do Projetista de Paley, que apesar de originalmente ser Evolucionismo Teísta, ou Deísta, acaba sendo também a frente mais articulada do Criacionismo.
O próximo passo dos Criacionistas deveria ser óbvio a qualquer um que tenha lido Thomas S. Kuhn. Eles estão a tentar criar um novo Paradigma, se não exatamente científico, ao menos cientificamente articulado, e se o número de seus representantes for significativo, bem como seu poder social, não poderemos negar suas chances de se expandir cada vez mais.
O alvo desta investida, ao contrário do que muitos podem pensar, não é exatamente a idéia de Evolução Biológica, mas um corpo de conceitos científicos que foi rotulado simplesmente como “O Evolucionismo” ou “A Teoria da Evolução”, mas que quase não lembra aquilo que o Paradigma Científico realmente defende. Sendo na verdade uma mistura de Cosmogênse do Big-Bang, Geogênese, Biogênese, Evolução Biológica, História e Antropologia caoticamente misturadas com uma miríade de posturas filosóficas em geral alheias, como Ateísmo, Socialismo, Secularismo, Darwinismo Social e Progressismo em Geral. Enfim, uma imensa versão espantalho do Paradigma Científico e Secular.
Os detalhes desta investida estão exaustivamente examinados em meu site, bem como eu outros para os quais eu forneço links, de tal forma que não faz sentido replicá-los aqui. Portanto pretendo agora passar para a próxima parte deste trabalho, que é a abordagem da Filosofia de Kuhn. Uma Filosofia que, ironicamente, poderia ser recebida de braços abertos pelos Criacionistas se eles se apercebessem da única dimensão onde sua abordagem realmente tem alguma substância.
A dimensão Filosófica.

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1.RUSSELL, Bertrand. A Filosofia entre a Religião e a Ciência
2.3 Tipos Básicos de Criacionismo
3.Alguém poderia me perguntar onde está, de acordo com minha explicação, o Criacionismo Filosófico. Este de fato existiu entre os Atomistas Gregos, os Filósofos da Natureza e o próprio Platão, porém não me parece possível identificá-lo em nível algum na atualidade. Enquanto há pessoas que ainda crêem em Mitos antigos ou Religiões Reveladas, não parece haver pessoas cultas a defenderem o Timeu ou o surgimento aleatório universal de Demócrito. Salvo, talvez, em alguma sociedade secreta que a mim não foi dado conhecer.
4.ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA DO BRASIL. Volume 17 – Protestantismo 6. Editora Melhoramentos de São Paulo. 1983.
Influenciado pelo Iluminismo, o Liberalismo Cristão pregava uma abordagem secularizada e desmitologizada do Cristianismo, reconhecendo a humanidade de Cristo e da Bíblia. Em reação surgiu no protestantismo o Fundamentalismo Cristão, na virada dos séculos XIX e XX nos E.U.A. Baseava-se em 5 pilares fundamentais:
1 - Inspiração Divina, Infalibilidade, Inerrância e Literalidade da Bíblia.
2 - Nascimento Virginal e Divindade de Cristo
3 - A Salvação pela Expiação de Cristo, levando a Justificação pela Fé.
4 - A Literalidade da Ressurreição de Cristo.
5 - A realidade do Segundo Advento. O eminente retorno de Cristo e o Juízo Final.
Não é por acaso que é daí em diante que surgem os movimentos Criacionistas organizados, que são praticamente “decretados” pelo Primeiro Fundamento. Esta é somente uma das inúmeras evidências da origem e comprometimento religioso do Criacionismo, que só passou a se articular amplamente como ciência a partir das frustrações judiciais das proibições do ensino do Evolucionismo em escolas. 6
Um bom texto sobre o tema está em: www.ipb.org.br/artigos/artigo_inteligente.php3?id=30
5. BEHE, Michael. A Caixa Preta de Darwin. Editora Jorge Zahar. 1997.
Principal articulador do Design Inteligente, é o livro onde foi popularizado o conceito de Complexidade Irredutível, em resposta ao falseador sugerido pelo próprio Darwin de que se fosse encontrado um órgão impossível de ser explicado pelo acúmulo progressivo de variações selecionadas, toda sua teoria deveria ser revista. Os adeptos do DI crêem terem encontrado vários órgãos Irredutíveis na Natureza, sugerindo a impossibilidade da Evolução se dar em termos meramente darwinianos, e invocando a noção de um Planejamento Intencional por trás do processo evolutivo. O resultado é um Evolucionismo Teísta, ou Deísta, e se eles próprios negam serem Criacionistas, tem por estes últimos sido largamente utilizados.

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A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS

Os Criacionistas provavelmente ficariam positivamente surpresos com a obra do Norte-Americano Thomas S. Kuhn devido a sua ênfase na dinâmica social. Para eles, a o Evolucionismo se impôs muito mais pela pressão social de um grupo intelectual do que por um eficiência teórica e objetiva. Como Kuhn não fornece parâmetros tão objetivos quanto os de Popper para explicar os meios pelos quais a Ciência progride, e sim um interação entre “Paradigmas”, me parece perfeitamente coerente adaptar os argumentos anti-evolucionistas à Filosofia da Ciência de Kuhn, que surgiu entre as décadas de 60 e 70, não só para atacar o modo como o paradigma Evolucionista se construiu, como para estruturar um princípio teórico que valide o movimento Criacionista como uma corrente pré-paradigmática com possibilidade de se tornar Ciência.
Os defensores de Kuhn provavelmente diriam que isto se daria somente mediante uma má leitura de sua obra, o que em grande parte eu concordo, mas não consigo ver um modo pelo qual possa  afirmar categoricamente que o Criacionismo não pode ser Ciência sem apelar para certos critérios Popperianos ou qualquer forma de Verificacionismo ou Falsificacionismo.
Por outro lado, também me parece que a mesma obra de Kuhn, se de fato permitir tal acomodação, também exigiria segundo seus critérios um preço alto a pagar pelo Criacionismo. É que ao que tudo indica, ficaria impossível sustentar suas características religiosas, que inviabilizariam a pesquisa progressiva da dita Ciência Normal. Dessa forma, embora me pareça possível, um Criacionismo verdadeiramente Científico seria necessariamente distante das pretensões dos fundamentalistas cristãos, progenitores do mesmo. Ainda que em oposição ao Evolucionismo, este “Criacionismo” Científico teria elementos impossíveis de serem harmonizados com os fundamentos de fé 4 , sendo muito mais um retorno de certos elementos aristotélicos associados a conceitos deístas do que um verdadeiro teísmo ao estilo cristão tradicional.
Para justificar tudo isto, passemos então a uma breve explanação sobre a teoria kuhniana.
Se eu fosse resumir a essência da obra de Kuhn, poderia dizer: “O desenvolvimento científico se dá mediante a interação de estruturas teóricas ( PARADIGMAS ) que guiam o conjunto de atividades promovidas pelos cientistas ( CIÊNCIA NORMAL ). O Paradigma se mantém a medida que vai eficientemente funcionando como RESOLUÇÃO DE QUEBRA-CABEÇAS, mas entra em CRISE quando passa sistematicamente a falhar na montagem dos mesmos, ou quando surgem ANOMALIAS que geram DESCOBERTAS. Então novas propostas PRÉ-PARADIGMÁTICAS surgem, e caso alguma se mostre suficientemente mais promissora vai ganhando adeptos, se expandido e consolidando até superar o Paradigma anterior.”
Feito isso, é preciso especificar cada um dos termos destacados em maiúsculas, cuja compreensão é fundamental na teoria de Kuhn.
PARADIGMA é o conceito fundamental da obra, é curiosamente, o próprio Kuhn admite que sua definição é um tanto circular. Posteriormente às críticas que recebeu, Kuhn chegou a abandonar o uso do termo, no entanto eu considero que o termo é bastante adequado uma vez que o conceito a que este se refere de fato é difuso.
Um PARADIGMA é uma série de postulados que são partilhados por uma certa comunidade, neste caso, a científica. Pode ser visto também como um “Padrão Referencial” que irá guiar todas as atividades desta comunidade. No caso, podemos dizer que outrora os físicos trabalharam sob um Paradigma Newtoniano, porém, para certas áreas de vanguarda, posteriormente passaram a trabalhar sob o Paradigma Einsteiniano.
Como CIÊNCIA NORMAL, entende-se toda produção científica que opere sob um Paradigma, que é o que define a estrutura fundamental da pesquisa, já prevendo seus rumos. O que ocorre então é um processo progressivo de acúmulo de conhecimento que em geral vai confirmando e fortalecendo cada vez mais o Paradigma, uma vez que funcionando como um processo de SOLUÇÃO DE QUEBRA-CABEÇAS previstos pelo Paradigma.
Porém quando ocorre da pesquisa científica falhar em montar estes Quebra-Cabeças, e isso começa a se tornar recorrente, o Paradigma vai caminhando para uma CRISE. Muitas vezes tais Crises são deflagradas devido ao surgimento de ANOMALIAS que não foram previstas pelo Paradigma, em geral devido a se situarem numa espécie de limiar de alcance do mesmo. Ou podem ocorrer devido a uma DESCOBERTA que contradiga o Paradigma. É importante diferenciar estes 3 fatores diferentes para a geração de uma Crise. No Primeiro Caso temos Crises geradas pela pesquisa rotineira da Ciência Normal, que podem indicar uma falha no próprio Paradigma. Nos Segundo Caso temos Crises ocasionadas pela limitação do alcance deste mesmo Paradigma, que começa a ser levado a campos onde originalmente não estivera devidamente articulado. E no Terceiro Caso trata-se evidentemente de um fenômeno imprevisto.
Muitas vezes a Crise é solucionada pelo próprio Paradigma, mas caso isto não ocorra, costumam surgir uma série de iniciativas PRÉ-PARADIGMÁTICAS que são vias alternativas e outras propostas diversas que poderão vir a configurar um novo Paradigma. Caso isto ocorra, e dependendo de seu sucesso, um Paradigma Anterior pode ser completamente abandonado, num processo que pode consumir toda uma geração de cientistas. Em casos onde a superioridade do novo Paradigma seja muito evidente, a substituição tende a se acelerar, em outros pode exigir que toda a geração anterior passe, o que não exatamente significa que o novo Paradigma não seja muito mais promissor.
Kuhn cita vários exemplos de transições entre Paradigmas na Química e na Física. Exemplos clássicos da astronomia como o Heliocentrismo, a superação da Teoria do Flogístico e outros são enfocados pelo prisma de sua teoria. Em todos os casos, ficam evidentes algumas observações que quero deixar bem explícitas.
Em Primeiro Lugar é sempre bom lembrar que os Paradigmas superados já foram em sua época revolucionários, sendo capazes de oferecer soluções a uma gama de problemas e produzir avanços na Ciência. Infelizmente, costuma haver uma espécie de erradicação dos vestígios da Paradigma anterior. Kuhn chega a afirmar que em muitos casos os cientistas que são educados num novo Paradigma sequer tomam conhecimento de muitos dos sucessos dos Paradigmas anteriores e muito menos das residuais vantagens que eles poderiam ter em relação ao Paradigma atual. Como a Ciência Normal passa a implementar também os manuais onde novos cientistas são treinados sob o enfoque exclusivo do novo Paradigma, costuma haver uma lamentável falta de visão histórica por parte da comunidade científica. Ele usa inclusive o termo “Invisibilidade das Revoluções Científicas” em um de seus capítulos.
Em Segundo, Kuhn enfatiza muito o caráter sociológico da Ciência, emprestando a esta um dinamismo infestado por interferências subjetivas que estão à margem da objetividade da pesquisa científica. De certo é exagero afirmar, como o fazem seus críticos, que ele propõe uma concepção irracional de Ciência, mas não se pode negar em toda a sua obra a ausência de sequer uma definição clara do que seja Ciência, além da “atividade que os cientistas exercem”. Creio que este problema pode ser entendido pela perspectiva de que Kuhn não está tão preocupado em descrever com precisão as atividades da Ciência em si, nem mesmo sua natureza intrínseca. Ele não está enfocando “A Lógica da Pesquisa Científica”. Seu objetivo me parece ser o de realizar uma História da Ciência, onde há amplo espaço para toda a subjetividade humana. Nesse sentido, é forçoso admitir que a objetividade intrínseca do trabalho científico não fará com que os cientistas se comportem com perfeita objetividade em todos os aspectos de sua vida, e o mesmo não se pode esperar do processo histórico, que é afetado por todos os aspectos da existência humana.
Em Terceiro, algo que quero chamar a atenção em especial é a ênfase que Kuhn dá sobre a impossibilidade da Ciência sem um Paradigma que a oriente. Um mau Paradigma ainda é melhor do que Paradigma nenhum, e assim, por mais grave que seja uma crise, não há chance de se abandonar um velho Paradigma enquanto não surja um novo capaz de se mostrar capaz não só de administrar devidamente à crise, mas de receptar as conquistas devidamente estabelecidas do Paradigma anterior que não tenham sido afetadas diretamente pela Crise.
Pela minha experiência com o Criacionismo, sou capaz de apostar que muitos dos criacionistas se sentiriam extremamente atraídos pela teoria da Kuhn, pois em grande parte elas parecem refletir suas desconfianças e acusações contra o Paradigma Evolucionista. De fato creio que uma abordagem criacionista kuhniana poderia funcionar com perfeição no que se refere a suas pretensões sociológicas e históricas. Na realidade, passei a ficar até mesmo esperando alguma investida criacionista de caráter kuhniano desde que estudei esta obra.
Em parte, minhas intenções neste trabalho são de certa forma preventivas. Quero adiantar desde já porque, apesar de inicialmente promissoras, abordagens kunhianas em favor do Criacionismo poderiam resultar pouco frutíferas, se não até mesmo suicidas, pois a teoria de Kuhn tem elementos ocultos que poderiam se virar quase espontaneamente contra o Criacionismo. O mesmo talvez não ocorresse exatamente com a investida do Design Inteligente, embora eu também desconfie de sua possibilidade de sucesso.
Se os criacionistas leram Kuhn ou não, no momento pouco importa, o que pretendo demonstrar a seguir é que de um modo ou e outro, não só as reivindicações criacionistas me soam curiosamente kunhianas, como em muitos aspectos os movimentos criacionistas tem se articulado num sentido muito similar ao descrito por Kuhn.
Todavia, antes que esta sugestão possa entusiasmar algum afoito, é melhor apontar de imediato alguns detalhes muito interessantes do livro de Kuhn.
Em lugar nenhum, em nenhum momento, Kuhn aborda o Evolucionismo, que só é citado como referência tempo local. Na verdade não há nenhuma sugestão de qualquer Crise ou mudança paradigmática na Biologia. O motivo na realidade me parece ser muito simples. Mal podemos dizer que tenha havido Biologia antes da emergência do paradigma evolucionista. Diferente de todos os paradigmas revolucionários citados por Kuhn, o Evolucionismo não teve rivais teóricos. Isso no mínimo sugere que Kuhn jamais viu qualquer crise na Biologia Evolutiva, e notoriamente, suas implicações sociológicas e subjetivas nem de longe insinuam qualquer exemplo na biologia.
Outro fato interessante é a constante recorrência ao modelo Darwiniano para explicar a evolução histórica da Ciência. Em diversas ocasiões ele descreve as revoluções científicas como processos de superação de uma espécie teórica por outra mediante uma “Seleção Natural” científica.
Por fim, gostaria de acrescentar que o modelo kuhniano parece passível de ser aplicado em outras áreas do conhecimento humano, como a Filosofia, e que mesmo negando a qualidade de Ciência a alguma vertente em especial, ela ainda pode ser descrita em sua dimensão kunhiana.

A CONTRA-REVOLUÇÃO BIOLÓGICA

Retomando elementos da Primeira Parte desta monografia, lembro que o Criacionismo que nos interessa foi criado praticamente por decreto, com a declaração dos 5 fundamentos de Fé do Fundamentalismo Cristão Norte-Americano 4. Apesar da resistência contra a idéia de Evolução Biológica jamais ter deixado de ocorrer, somente após o Primeiro Fundamento, que afirma a inerrância e literalidade da Bíblia, é que o combate contra o Evolucionismo se tornou vital para o Protestantismo dominante no sul do E.U.A.
Segundo Michael Ruse 6, um momento importante para o cristianismo sulista dos Estados Unidos da América foi a recuperação pós-guerra civil, onde uma série de valores tradicionais tiveram que ser revitalizados para dar suporte psicológico e moral aos vencidos escravocratas confederados. Outro momento importante teria sido a Guerra Fria, quando o acidentado ateísmo político dos soviéticos levaram os norte americanos a reafirmarem seus valores religiosos. Época em que adicionaram a frase In God We Trust em suas cédulas.
De fato, estes dois momentos correspondem respectivamente:
Ao período onde o Protestantismo Sulista Cristão começou a se articular e se fortalecer, o que viria a resultar no Fundamentalismo e conseqüentemente nas primeiras iniciativas anti-evolucionistas que se popularizaram pelos estados do sul, em especial proibições do ensino de Evolução nas escolas.
E ao momento onde surgem as iniciativas de Criacionismo “Científico”, a partir da década de 1950, com a multiplicação de instituições religiosas com pretensões científicas, numa época onde a proibição legal de ensino evolucionista já não era mais eficaz.
Citei estes exemplos para enfatizar algo que pode soar aborrecido para muitos, mas que jamais deixarei de expor e deixar claro. O Criacionismo é Necessariamente um movimento Religioso! Ele é total e completamente indissociável da Religião. Não existem exemplos de movimentos criacionistas não religiosos, por mais científicos que tentem se apresentar.
No entanto, não são poucas as tentativas de disfarçar ou mesmo negar esta procedência. Algumas iniciativas criacionistas incluíram, por exemplo, o lançamento de livros didáticos em versões para serem usados em redes públicas que foram apresentados como meramente seculares, característica obrigatória para serem aceitos num sistema de ensino laico. No entanto, uma observação cuidadosa pode perceber que elementos religiosos recorrentes foram simplesmente removidos da versão original deixando lacunas inexplicáveis. 6 É comum também os criacionistas se apresentarem como cientistas, e não como teólogos, e afirmarem que suas abordagem tem intenções que em nada se relacionam com a religião.
Mas é evidente que tais iniciativas foram fundamentalmente infrutíferas, então, mais ainda, o Criacionismo sofisticou suas abordagens. Passou então a se inteirar cada vez mais da teoria evolucionista, e mais e mais incorporou seus elementos. No que há de mais sofisticado 7 em termos de Criacionismo na atualidade, embora ainda esteja fragmentado em iniciativas particulares, costuma haver um notável conhecimento dos problemas específicos do Evolucionismo, ou em termos kunhianos, consegue explorar as brechas e fraquezas do Paradigma Evolucionista. A partir daí, há uma abordagem que maximiza estes problemas e visualiza uma Crise, acusando a Ciência Normal de não estar conseguindo solucionar uma série de Quebra-Cabeças. A partir de então começa a haver uma articulação pré-paradigmática e sugestões de novos paradigmas.
Já o movimento do Design Inteligente não tem uma origem religiosa, ao menos clara, e sinceramente é difícil identificar o modo com ele se relaciona com a religião. Alguns defensores mais radicais do Evolucionismo o acusam de ser um “Criacionismo” disfarçado, o que pessoalmente discordo, uma vez que em termos técnicos ele não é criacionismo, mas sim Evolucionismo Teísta. Outros o acusam de ser uma estratégia criacionista de longo prazo, como um primeiro passo no sentido de começar a articular uma posição mais atraente para pensadores menos ortodoxos, afim de engrossar as fileiras de críticas ao modelo evolutivo atual. Há quem pense também que nada disso se aplica ao caso, que a intenção DI é autêntica, mas que de qualquer modo ele irá fortalecer o movimento criacionista.
O que sabemos ao certo é que ao menos Michael Behe, principal articulador do DI, é de fato católico, o que o distancia do Criacionismo tradicional, e que declara abertamente em seu livro que não põe em dúvida as teorias tradicionais de Origem e Idade do Universo, nem da Abiogênese e da Ancestralidade comum de todos os seres vivos. Seu alvo não é na realidade a Evolução, mas sim a Teoria da Evolução Darwiniana, ou mais diretamente o Neodarwinismo.
Se o Criacionismo não é ciência e o DI talvez fosse, por sua vez o estatuto científico do Evolucionismo está mais do que estabelecido, mas isso não significa que ele não tenha um lugar especial, e um tanto anômalo, no rol dos Paradigmas científicos. Tal peculiaridade se dá pela própria natureza da Biologia, cujo objeto de estudo situa-se numa larga fronteira entre o Natural e o Humano.
Costumamos considerar a Física e Química como exemplos de Ciências Naturais, o mesmo pode ser aplicado à Biologia, porém já é comum alguns teóricos a considerarem num nível diferente, em geral usando o termo Ciências Biológicas. Isso se justifica primeiro devido ao seu grau de complexidade. Ao lidar com estruturas incalculavelmente mais intrincadas do que a maioria das estruturas estudadas pelas Ciências Naturais, a Biologia costuma estar às voltas com sistemas altamente complexos e de difícil previsão. Isso explica porque é tão mais difícil descobrir uma vacina contra determinado vírus ou entender as causas de uma certa enfermidade do que lidar com moléculas, átomos ou astros celestes, quando todos estejam ao alcance de nossos meios observacionais.
Os limiares da Física costumam ser definidos pelo alcance de nossos instrumentos. Ainda não conseguimos atingir certos níveis de compreensão porque exigem o estudo do incomensuravelmente pequeno, ou de prováveis estruturas que desafiam nossas próprias teorias. Os da Astronomia se dão em função do quão longe nossos rastreadores do espaço profundo são capazes de ir. Porém parece quase certo que quando conseguirmos recursos capazes de penetrar ainda mais profundamente nos subníveis ou superníveis da realidade, daremos saltos em nossa compreensão do Universo.
Na Biologia não ocorre assim, em muitos casos não dependemos de instrumentos cada vez mais acurados, mas sim de tempo para executar longos e criteriosos testes. Mesmo podendo alcançar praticamente todos o níveis estruturais relevantes de certo objeto de estudo, ainda somos barrados pela brutal complexidade deste, que desafia os mais criteriosos controles e os mais sofisticados computadores. Além disso, nas Ciências Duras, outro termo comum que engloba Física e Química, muitas vezes os avanços dependem diretamente de acrobacias matemáticas, mas o progresso na Biologia  não se relaciona assim tão diretamente com o avanço matemático.
Como se isso já não bastasse, ainda temos uma gradação na biologia que vai rumo a um enfraquecimento da objetividade, pois áreas como Neurobiologia se aproximam dos limiares de questões psicológicas, e Medicina, Saúde e similares, cada vez mais se aproximam dos aspectos sociais. Assim sendo, não é de se admirar que a Biologia funcione de forma diferente.
Por outro lado certos conhecimentos “biológicos” intrínsecos da humanidade sempre foram bem mais avançados do que conhecimentos físicos. Xamãs e bruxas já conheciam a cura para várias doenças muitíssimo antes de termos qualquer noção de modelo atômico. Aristóteles já tinha dado os primeiros passos na classificação e dissecação de seres vivos, com resultados razoáveis, numa época em que qualquer modelo de compreensão do Universo pode ser considerado ingênuo.
Há outras características interessante da Biologia que quero frizar. Ela é, quase certamente, a mais apaixonante de todas as Ciências para a maioria das pessoas. Não há crianças que não gostem de animais, o ecossistema e a biosfera que nos cercam, vulgarmente chamados de “natureza”, sempre atraem a atenção das menos curiosas pessoas, e a palavra Ecologia saiu do jargão científico para se tornar lema de ordem em questões que mexem com os sentimentos das massas. Há uma mistura entre os biólogos e os ativistas ambientais que jamais poderíamos esperar dos físicos.
Não obstante, a Biologia é tardia como uma ciência organizada, apesar de seus rudimentos poderem ser rastreados em qualquer grupamento humano ancestral, e apesar de muitos de seus objetos serem imediatamente acessíveis. Com tantas características peculiares, não é de se espantar que as teorias biológicas também se comportem de um modo menos convencional.
Não é por acaso então que, diferente da teoria eletromagnética de Maxwell ou gravitacional de Newton. A Teoria Evolutiva de Darwin não nasceu de um mero trabalho enclausurado em laboratório, nem de homéricas degladiações matemáticas. Ela surgiu após uma ostensiva viagem por todo o mundo, exaustivas experiências ao ar livre e exame meticuloso de nichos ecológicos distantes e exóticos. Foi uma autêntica Odisséia de campo inimaginável na vida de qualquer químico ou matemático. Ao apresentar sua teoria ao mundo, após se debruçar décadas sobre toneladas de dados que recolheu ao longo de 5 anos, Darwin impressionou muito mais pelo montante de observações registradas do que pela simplicidade e elegância de seu modelo teórico. 8
E assim temos a Teoria da Origem das Espécies por meio da Seleção Natural, uma arquitetura intelectual com pouquíssimo uso de matemática, e tão simples que chega a levantar o questionamento de porque ninguém havia pensado nisto antes, além é claro de seu contemporâneo Alfred R. Wallace, que não foi nem um pouco diferente de Darwin. Ele também só apresentou sua teoria após extensas viagens investigativas que o levaram a várias partes do mundo.
Com tudo isso quero salientar a unicidade da Teoria Evolutiva, que repousa não só na unicidade da Biologia, pois de certa forma todas as ciências são únicas, mas talvez na sua abrangência, que não pode ser coberta nem no mais sofisticado dos laboratórios. Não é a toa que a profissão de biólogo costuma ter apelo para os amantes da “natureza” e apreciadores de paisagens exóticas e paraísos distantes.

Chega a hora então de tentarmos adaptar os conceitos de Kuhn para a Biologia. Veremos que antes de Darwin havia várias correntes de pensamento Naturalistas. Várias já compartilhavam de conceitos evolutivos em geral Lamarckistas, e outras eram fixistas. É muito curioso notar que não havia nenhum tipo de linha tipicamente Criacionista no sentido dos criacionistas atuais. Muitos aceitavam as origens na versão da Bíblia sem dificuldade, mas ao menos na Biologia, ou pré-biologia, não parecia haver muito interesse em investigar tais origens. A explicação “Deus Criou” era satisfatória, e havia poucos que se interessavam em investigar criticamente esses milagres divinos.
Tivemos casos como Thomas Burnet 9, que se propôs a estudar cientificamente o dilúvio, mas partindo do pressuposto que ele poderia ser explicado por causas puramente naturais. E um dos maiores oponentes do Evolucionismo, o renomado anatomista James Cuvier, não tinha muitas preocupações em estudar os processos que originaram os organismos que tão detidamente examinou.
Tudo isso mudou após a Revolução Biológica de Darwin, os cientistas se uniram em torno de um conceito unificador que explicava a ligação entre todos os ramos do Naturalismo. De uma certa forma, podemos ver isso como uma fundamentação histórica. Foi a Evolução que colocou os objetos do Naturalismo numa visão cronológica coerente. Se antes se acreditava na estória bíblica, não parecia haver interesse em relaciona-la com os dados, e invariavelmente observações mais cuidadosas da natureza entravam em choque com seus conceitos mitológicos 10.
Mas após Darwin, e também Charles Lyell, ficou claro que o mundo era resultado de um processo histórico dinâmico, e que esse passado se refletia no modo como as coisas são no presente. Somente após isso pode-se afirmar que surgiu uma ciência que mereça o nome de Biologia.
O que ocorria então, me parece, é que todos os pensadores pré-evolutivos trabalhavam sem uma Paradigma bem definido. Não havia exatamente uma Ciência Normal, e sendo assim não poderiam sequer haver Crises. Mas após o Paradigma Evolucionista se afirmar, o progresso científico pôde se dar, pois como Kuhn afirma, não há muita possibilidade de progresso na ausência de um Paradigma orientador, com todas as suas implicações de previsão e testagem.
Daí então o Paradigma evolucionista se estabeleceu e se replicou, se desmembrando como é de costume em sub áreas mais complexas. Após a síntese que resultou na Teoria Sintética da Evolução, o Neodarwinismo, disseminaram-se as mais diversas linhas de pesquisas que então passam a operar claramente num sentido kunhiano.
Entretanto, nesse caso, o Evolucionismo deixa de ser um simples Paradigma, mas sim um Super Paradigma eu diria, pois tal conceito não é expresso neste obra de Kuhn, enquanto a Ciência Normal biológica se desenvolve com a interação de Paradigmas menores, que eu chamaria de sub-paradigmas, como o Neutralismo e o Mutacionismo. Todas as reviravoltas na Biologia ocorrem sob o Evolucionismo, as Crises afetaram paradigmas como o Mutacionismo, não o Evolucionismo em si, que tem se mantido estável há 150 anos.
Além de tudo isso, é necessário lembrar que o conceito de Evolução Biológica é maior que o conceito de Neodarwinismo. Pode haver dúvidas sobre o alcance da Seleção Natural ou os processos da Deriva Genética, mas seguramente está completamente fora de questão o fato de que a Evolução tenha ou não ocorrido. Isso é mais simples de entender quando tomamos a visão de um ponto de vista histórico. Analogamente, podemos estudar a sociedade brasileira, os partidos políticos ou a economia, apenas pelo fato de que temos consenso sobre os processos históricos que levaram a atual disposição. Ninguém jamais conseguiria compreender a situação atual sem olhar para o passado. Na Biologia é a mesma coisa. A Natureza só passou a fazer sentido quando passamos a ter uma noção histórica dela, o que justifica a famosa frase de Theodosius Dobzhansky 11.
A Biologia passa desapercebida pela obra de Kuhn, ao que tudo indica, pelo simples fato de que ela não experimentou nenhuma revolução comparável às que ocorrem na Astronomia, Química e Física. Na realidade houve até hoje apenas uma única revolução, a Evolução Biológica.

Uma outra notável característica da teoria kunhiana é poder ser parcialmente adaptada para outras áreas do conhecimento humano, em especial a Filosofia, ainda que sem plena aprovação do próprio autor. Pode-se pensar claramente em Paradigmas filosóficos. Atualmente temos o Paradigma Analítico, o Hermenêutico e o Epistemológico, pelo menos. E poderíamos até dizer que há uma “Filosofia Normal” dentro destes Paradigmas.
No entanto a Filosofia não enfrenta Crises da mesma forma. Evidentemente não há “descobertas” filosóficas, bem como as Anomalias, se ocorrem, tem origem muito mais em outras áreas, ou se relacionam mais aos limites do próprio Paradigma. De fato, a única Crise possível para um Paradigma filosófico é começar a falhar em se adequar a novos desmembramentos de pesquisa, ou melhor ainda, ficar para trás enquanto paradigmas rivais o fazem com maior facilidade.
A concorrência parece ser o motivo mais forte pelo qual um Paradigma filosófico, nas palavras de Kuhn, sairia de moda. Não há dados empíricos que forcem diretamente estas mudanças, e neste caso as idéias kunhianas de uma dinâmica psicossocial historicamente sensível e sujeita a subjetividade e humores se aplicam com ainda maior perfeição.
Levantei este questionamento para chegar na verdade até a Teologia. Sendo ela basicamente filosófica, pode ser vista como regida por estrutura similar de fatos. Reagindo evidentemente à História e à Ciência, a Teologia, bem como toda a Filosofia, apresenta uma dinâmica de comportamentos que só pode ser entendido em seu devido contexto. A ascensão do Fundamentalismo Cristão evidentemente é um exemplo disso. Reagindo ao progresso científico e ao momento histórico, os movimentos religiosos protestantes norte-americanos, para não dizermos apenas os teólogos protestantes, reagiram de um modo relativamente coerente com suas necessidades de preservação.
O Criacionismo então seria o resultado de uma “Crise”, não no sentido investigativo, mas uma crise de identidade social, de adequação ao mundo. Enquanto o Liberalismo Cristão optou por se adaptar aos novos tempos e incorporar elementos atuais das novas áreas do conhecimento, o Fundamentalismo decidiu em contrário.
O resultado final é uma das coisas mais peculiares da história, um movimento que recentemente tem lançado mão das mais arrojadas vanguardas da especulação científica afim de questionar a validade do já estabelecido, com vista a defender uma visão de mundo arcaica.

Mas como eu já disse antes, neste trabalho quero examinar algo que não fiz até então, que é ver o Criacionismo não só como um conservadorismo reacionário, mas também como defensivo num sentido legítimo.
O progresso científico dos últimos séculos, diretamente proporcional ao enfraquecimento do poder teocrático, legou base para uma série de iniciativas menos científicas do que ideológicas. Talvez empolgados por um frenesi anti-religioso guilhotinesco, certos pensadores passaram a atacar as tradições religiosas do ocidente lançando mão do arsenal legado pelas revoluções científicas.
Se antes a maioria dos cientistas ainda tinha que se curvar à idéia de um criador divino para explicar algumas peculiaridades da natureza, após a Revolução Biológica finalmente parecia haver um argumento convincente para explicar o Universo sem a necessidade de um Deus Criador. O resultado é que se antes filósofos como Hume eram deístas por pura falta de opção, agora a “Perigosa Idéia de Darwin” 12 poderia ser usada para, além de seus limites biológicos, expulsar Deus da última lacuna que lhe restava.
Dentre outros, houve resultados realmente nefastos ao se extrapolar a REvolução Biológica para áreas como Sociologia e Economia. A justificação do Capitalismo, a Eugenia e Darwinismo Social deveriam nos fazer ser mais tolerantes com a incrível incapacidade de muitos Criacionistas em distinguir o Descritivo do Normativo. O espalhamento do Paradigma Evolucionista para fora da Biologia, devido a uma notável movimentação social contagiada pela nova revolução, atingiu seu ápice de impropriedade no Nazismo, que terminou por prestar o “favor” de alertar para os problemas de se transbordar para outras áreas conceitos que foram inicialmente criados para uma área específica. Ainda que inicialmente muitas destas propostas fossem bem intencionadas.
Tomemos por exemplo a filosofia de Herbert Spencer (1820-1903), que em sua obra On the Evolution in Religion, bem como em várias de suas outras obras de forte viés Evolucionista, traça uma sagaz história da religião que sugere a passagem de um estado teísta para o outro, no caso Politeísmo para Monoetísmo, consagrar-se há Ateísta caso se demonstra a falsidade do postulado fundamental que daria origem às religiões ancestrais, que é a presença fantasmagórica do Pai 13. Ora, indo mais diretamente na evidente implicação freudiana 14 desta linha de pensamento, temos uma excelente base filosófica para o ateísmo.
Passemos agora para a contemporânea Evolução Criadora de Henri Bergson (1859-1941), que coloca um princípio de Elán Vital permeando todo o processo evolutivo biológico, 15 temos por outro lado base para o desenvolvimento de um Panteísmo, inclusive com conotações que remetem a Espinosa ou Leibniz. Curiosamente, assim como outrora o fizera Hobbes 16, Bergson confessava uma inclinação cristã cada vez maior, não obstante o efeito distinto causado pela sua filosofia.
Lembremos que desde Comte, houve tendências de “secularizar” a religião como um movimento social explicável pelo ponto de vista histórico, e invariavelmente superável. Mesmo casos como Chardin, por mais que pretendessem integrar o conceito evolutivo à religião, terminavam por gerar resultados de vanguarda excessivamente sofisticados para uma perfeita integração à ortodoxia religiosa. O Liberalismo Cristão é uma evidente consequência destas linhas de pensamento, e em contrapartida o Fundamentalismo 4.
Temos então um transbordamento do Paradigma Evolucionista para além da Biologia, sendo cooptado e integrado às mais variadas linhas de pensamento com os mais diversos resultados, mas invariavelmente destoando das intenções religiosas tradicionais. Mas o problema não está exatamente aí, mas sim na confusão típica da época de Darwin em ainda esperar que a Filosofia compartilhasse da positividade das ciências, dando a todo e qualquer discurso baseado em Evolução um verniz de cientificidade que demorou todo o Século XX para ser removido.
Dentre as consequências mais bizarras, há que se citar o famoso Caso Scoppes, que envolveu o julgamento de um professor do Arkansas que violou a lei de proibição do ensino evolucionista nas escolas. O desenvolvimento e desfecho do caso são triviais, Scopes foi condenado a uma multa irrisória que terminou invalidada por detalhes jurídicos técnicos, e tecnicamente falando, foi condenado. No entanto a repercussão mundial do caso representou uma grande derrota para o fundamentalismo cristão, que foi associado ao pensamento retrógrado. Isso numa época onde a corrida tecnológica se intensificava apontando para a urgência de um desenvolvimento científico maior, resultava numa desarmonia entre o progresso e o conservadorismo.
Mas o que quero salientar neste caso é um “detalhe” inacreditavelmente pouco conhecido tanto por evolucionistas quanto por criacionistas, denunciado pelo próprio Stepehn Jay Gould 9. Parece ter passado totalmente desapercebido pelo caso Scoppes que o livro de Biologia em questão no julgamento estava repleto de conceitos etnocêntricos e eugenistas derivados de linhas de pensamento que incorporavam o evolucionismo à sociologia e política. Segundo Gould, tais elementos fariam o livro ser hoje em dia banido pelos próprios evolucionistas por ser completamente inaceitável do ponto de vista ético, em especial bioético, uma vez que sugeria medidas de esterilização em massa de certas etnias socialmente menos favorecidas.
É claro que isto porém nem sequer entrou em pauta no julgamento, mesmo porque não faria sentido um típico WASP “sul norte-americano” se incomodar com sugestões de que a raça ariana seja evolutivamente superior dentre as demais raças 15.
Soma-se isso à popularização e apropriação do discurso científico pelo senso-comum, e tem-se uma perigosa nova forma de justificação pelas massas de atos eticamente inaceitáveis, que se valem da confusão entre o que a Natureza é, e o que a Humanidade deve ser.

Espero então que fique claro que não é apenas o Criacionismo que fez um mau uso de conceitos científicos, teólogos liberais, filósofos e mesmo cientistas também extrapolaram idéias científicas para além de seus domínios teóricos, por vezes com bons resultados, por vezes com resultados perigosos, mas sempre implicando numa delicada transferência de conceitos que necessitam de uma reinterpretação mais cuidadosa do que muitos costumam promover.
Não estou sugerindo que a Ciência não deva influenciar a Filosofia, pelo contrário, pode e deve. A própria Filosofia Analítica e ainda mais a Filosofia da Mente muitas vezes mal se diferenciam da produção científica de vanguarda.
Mais interessante ainda é notar que a própria obra de Kuhn é um exemplo do transbordamento do Evolucionismo. Ele utiliza conceitos de Descendência, Variação e Seleção para explicar o modo como Paradigmas emergem de outros, se superam e se perpetuam, e a meu ver, ainda que razoavelmente bem, qualquer tentativa de levar o Evolucionismo para fora do âmbito biológico costuma incorrer num risco fundamental.
De certo que podemos detectar “Hereditariedade”, num sentido conotativo, em praticamente qualquer âmbito, bem como Descendência com Variação e Seleção. Podemos ver tais idéias na produção industrial, intelectual e artística. No entanto, no âmbito biológico ocorre algo exclusivo, que é a impossibilidade de que duas descendências suficientemente divergentes se misturem. Enquanto correntes filosóficas distintas podem se juntar numa síntese, ou temos veículos que fundem funções de outros veículos como num hidroavião, na árvore genealógica da vida não existem cruzamentos inter espécie. Uma vez especiado, um ramo evolutivo jamais irá se misturar a nenhum outro, e essa é uma peculiaridade exclusiva dos seres vivos.
Apesar deste detalhe simplesmente incontestável, temos visto largas aplicações das idéias darwinianas para outras áreas, as vezes até mesmo para a física. Em geral tais aplicações são procedentes, mas parece que falta esclarecer que não se pode transportar totalmente o Evolucionismo, e sim partes dele. É evidente que a Seleção pode ser aplicada à qualquer sistema onde haja Variabilidade, mas isso só não é suficiente para aplicar o Darwinismo sem uma boa reformulação estrutural.
Essa tendência de se lançar mão de conceitos evolutivos em quase todas as áreas, explica e até justifica algumas posturas reativas criacionistas, e anti-cientificistas em geral.

Para finalizar esta parte, tentarei fazer uma “previsão” de como os criacionistas poderão se portar de agora em diante. Como o próprio Kuhn afirmou, muitos Paradigmas só desaparecem quanto todos os membros de sua geração se forem, e a velha guarda 17 do Criacionismo “Científico” ainda está bastante ativa, insistindo em fazer uma incrível confusão entre Evolução Biológica, Biogênese, Cosmogênese, Ateísmo e muitas outras vertentes.
Os novos criacionistas “científicos”, como já tenho pessoalmente notado, estão cada vez mais próximos do DI, e se livrando cada vez mais dos elementos sobrenaturais de sua religião. Têm absorvido as idéias de outros críticos da evolução e construindo um possível pré-paradigma razoavelmente coerente. Suas abordagens em geral se focam no Neodarwinismo, evitando cometer a clássica confusão criacionista que não diferencia Teoria da Evolução com Evolução em si, e aceitando integralmente a dita “Microevolução”, um curioso conceito usado para se referir a mudanças muito rápidas nas espécies que podem ser vistas em períodos de tempo curtos.
Seu objetivo é basicamente demonstrar a insuficiência do atual Paradigma Evolucionista como conceito central na Biologia, e apontar para uma crescente crise, tal como o faz Michael Behe ao afirmar que as “caixas pretas” são descobertas científicas que trazem à tona anomalias cada vez maiores. Se isso fosse possível e a crise se agravasse, seria evidentemente necessário substituir o Paradigma Evolutivo atual por um novo Paradigma, e este seria um modelo que teria como principal característica a tese de que a evolução tem que se dar mediante algum parâmetro orientador intencional, que eles tentarão identificar com a Divindade de suas religiões.
Isso deve implicar num tipo de abertura ao Deísmo, bem como no retorno do argumento que um universo que uma vez criado pode se sustentar a si próprio seria uma evidência ainda maior do poder do criador. Há várias formas de se viabilizar uma estrutura racional deste tipo, no entanto, creio que ao menos 3 razões colocam limites aparentemente intransponíveis para se chegar a um Criacionismo “Científico” que seja satisfatório ao Fundamentalismo Cristão.
Primeiro, por mais complexas que sejam as estruturas encontradas, por mais brilhante e sofisticada que seja a criação, nada nos permitiria inferir que o tal criador fosse de fato perfeito. Na realidade não existe qualquer evidência concebível que demonstre a perfeição de um criador, muitíssimo menos sua Onipotência. Dessa forma o Planejador Inteligente poderia ser qualquer coisa, inclusive uma espécie que se desenvolveu anteriormente por uma Evolução de princípio puramente casual, e então se tornou suficientemente avançada para produzir fenômenos evolutivos dirigidos mais complexos.
Segundo, uma coisa é demonstrar a necessidade do criador, e talvez até compatibiliza-lo com um modelo de divindade similar ao do Deus Cristão. No entanto isso implicaria em que a Bíblia fosse de fato obra deste tal criador, e as discrepâncias entre o que ela afirma e o que se verifica na natureza exigirão uma explicação aparentemente impossível. Nesse caso, a hipótese de que o tal criador fosse mais compatível com alguma outra religião, como o Kardecismo, seria muitíssimo mais provável, e ao invés de uma vitória do Fundamentalismo Cristão, teríamos o exato oposto. A religião que melhor se integrasse a esse novo modelo seria enormemente beneficiada, causando uma crise ainda maior no Protestantismo Tradicional.
Terceiro, se tal modelo fosse bem sucedido e conseguisse se tornar paradigmático, continuaria a haver disputas de várias tradições diferentes. Católicos, Judeus, Hindus e etc iriam desenvolver suas próprias linhas de pesquisa e aqueles que estivessem melhor preparados com certeza se destacariam e fortaleceriam ainda mais suas religiões. Creio que os Criacionistas Protestantes seriam esmagados pela produção científica do “Criacionismo” Católico ou Judáico, ou mesmo Hindu.
Mais uma vez lembro que mesmo que tal Criacionismo fosse muito bem articulado, ele teria que se arquitetar de um modo distante das tradicionais religiões protestantes. Um série de conceitos das teologias luteranas ou calvinistas não teriam a menor aplicação, mas por outro lado conceitos filosóficos aristotélicos poderiam ser úteis para o embasamento teórico, e isto provavelmente invocaria São Tomás de Aquino. Ou seja, a Teologia Católica já largaria em grande vantagem no que se refere aos fundamentos organizacionais desta nova investida científica. Me parece inevitável que isso implicaria em ressuscitar problemáticos conceitos teleológicos, com todas as implicações metafísicas.
Com tudo isso, para o Criacionismo “Científico” atual, não vejo qualquer benefício em insistir num avanço sobre áreas do conhecimento que lhe sejam estranhos. Os paradigmas teológicos não sobreviveriam, e seriam rapidamente substituídos por paradigmas derivados de ciências ou filosofias alheias ao fundamentalismo.
Um preço bem alto a pagar.

Mesmo não havendo Crises propriamente ditas no Paradigma Evolutivo, apesar do título do livro de Michael Denton18, e caso possamos dizer que há pequenas crises na Biologia, elas poderiam ser vistas dentro do conceito kunhiano de que as Crises são momentos onde muitas vezes, se não na maioria delas, o Paradigma sai fortalecido, pois o solucionamento da mesma aumenta seu poder explicativo e preditivo e elimina as anomalias relacionadas.
Visto a estabilidade da conquista da Revolução da Evolução Biológica, quaisquer crises que tenham havido só serviram para aumentar ainda mais seu local privilegiado. No entanto Kuhn também tem conceitos que nos levam a desconfiar disso. Exatamente como dizem os Criacionistas, caso tenha havido uma crise significativa, a tendência é que ela tenha sido acobertada pela dinâmica de Solução, que invariavelmente incorpora a mesma de um modo análogo ao que o sistema imunológico incorpora informações sobre agentes infecciosos e aumenta ainda mais seu poder de resistência aos mesmos.
Talvez o pior seja que ocorra do Paradigma Evolucionista sequer esteja sendo capaz de detectar a crise, pois como Kuhn afirma, quase sempre a crise não é anunciada pelos integrantes do Paradigma que a sofre, mas sim pelos de paradigmas rivais. A tendência é que os cientistas administrem seus problemas internamente, sem abrir-se à crítica externa e por definição leiga. Ou como o próprio Michael Ruse declarou: “Roupa suja se lava em casa”.
Em especial neste caso, os Evolucionistas teriam ainda mais motivos para ocultar qualquer crise e evitar fortalecer o movimento criacionista, porque mesmo que existam novos candidatos a paradigmas realmente capazes de oferecer uma solução científica sem segundas intenções, ocorreria um caos temporário onde qualquer cavalo de tróia poderia se infiltrar, com consequências que variam das incômodas até as socialmente perigosas.
Se isto de fato estiver ocorrendo, então me parece que o estabelecimento científico corre um sério risco histórico. Estamos atravessando uma fase marcada pelo fortalecimento político do fundamentalismo cristão, que tem aumentado sua esfera de influência. A exemplo do que já tivemos em nosso estado do Rio de Janeiro, não há a menor dúvida de que uma vez no poder, os fundamentalistas cristão irão usar suas prerrogativas executivas para forças o ensino do criacionismo nas escolas e onde mais for possível, e sem a menor crise de consciência.
Caso tal processo ocorresse na forma como imaginei mais acima, não creio que o resultado fosse de fato um problema grave, e de certa forma, poderia até mesmo haver um benefício gerando pelo diálogo entre dois paradigmas sérios. Infelizmente me parece mais provável que tal ocorresse de um modo menos positivo, implicando numa infiltração da política, de ordem religiosa, sobre a esfera da academia e ciência em geral. A antiga união soviética nos mostra um triste exemplo do que a intervenção política dentro da ciência pode ocasionar19.
Mas voltando ao otimismo, a falta de um paradigma rival ao Evolucionismo pode de fato ser um problema, visto que na ausência de concorrência haja uma desenvolvimento mais lento. Resta saber se um desenvolvimento mais rápido não seria demais para os mais diversos setores sociais, que mal dão conta de digerir as mais recentes conquistas das ciências biológicas, e todas as suas implicações bioéticas, que são o tema de nosso próximo capítulo.
Antes porém, gostaria apenas de fazer um breve comentário sobre o texto “Evolucionistas e Criacionistas”20 do filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, que vê este debate como um larga falta de visão de conceitos filosóficos básicos.
Segundo Carvalho, tem partido do Evolucionismo a premissa de que a natureza demonstra a inadequação da idéia de um Criador, e do Criacionismo o exato contrário. Sua análise diz que isso resulta da falta de conhecimentos teleológicos básicos, pois em termos aristotélicos, a observação de um sistema em si próprio jamais permitiria qualquer conclusão relativa à sua função, ou seja, sua Causa Final. Seria necessário estar além da Natureza para qualquer afirmação desta ordem, visto que um Criador necessariamente seria transcendente.
Pelo que vejo, a colocação do autor é correta, o simples estudo do nosso mundo físico não nos permite qualquer conclusão válida quanto a este ter ou não um propósito. Qualquer investigação nesse sentido seria claramente metafísica. No entanto, como se pode ver, essa análise está atacando não a postura científica evolucionista, mas os abusos da mesma.
Cientista algum pode, em termos puramente científicos, fazer qualquer afirmação válida sobre a inexistência de Deus. Na realidade, antes seria mais fácil até fazer o contrário. Mas isto é só mais um exemplo de como não só o senso-comum, mas muitos lugares comuns acadêmicos tem caído na armadilha de confundir discursos filosóficos com científicos.

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6. RUSE, Michael. But Is it Science? – The Philosophical Question in the Creation / Evolution Controversy. Prometheus Books. 1988

7. Como exemplo a interessante Teoria das Hidroplacas...

8. FUTUYMA, Douglas J. Biologia Evolutiva. Ribeirão Preto - SP. Editora FUNPEC - RP 1986

9. GOULD, Stephen Jay. Pilares do Tempo. Rio de Janeiro – RJ. Editora ROCCO. 2002.

A questão do livro de evolução envolvido no Caso Scoopes pode ser visto diretamente no capítulo A Paixão e a Compaixão de Willian Jennings Bryan, página 119.

10. WHITE, Michael. Leonardo: Primeiro Cientista. Editora RECORD. 2002.

11. “Nada na Biologia faz sentido exceto sob a luz da Evolução.” Theodosius Dobzhansky (1900-1975), geneticista russo naturalizado norte-americano, foi autor de importante obra Genetics and the Origin of Species 1937.

12. DENNETT, Daniel. A Perigosa Idéia de Darwin. Editora ROCCO 1998.

13. GENESTIER, Paul. HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. Editora Martins Fontes. São Paulo. 2001.Original DICTIONNARIE DES PHILOSOPHES. Cesses Universitaries de France, 1984.

14. FREUD, Totem e Tabu.

15. DEVAUX, André-A. HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. Editora Martins Fontes. São Paulo. 2001.

16. HOBBES, Thomas. O Leviatã, Capítulo “Da Religião”.

17. Como exemplo: Henry Morris, John C. Witcomb, Duane T. Gish, A.E. Wilder Smith e outros.

18. DENTON, Michael. Evolution: A Theory in Crisis – New Developments in Science are Challenging de Orthodox Darwinism. Bethesda: Adler & Adler. 1985.

19. No caso, me refiro à Biologia de Lisenko.

20. Infelizmente tal texto só está disponível na internet, pois constou apenas como material de apostila de um Seminário de Filosofia em 2002. Pode ser visto num dos sites do autor “Mídia Sem Máscara”, em outro texto datado de 29 de julho de 2004, em www.midiasemmascara.org/print.php?id=2367 , entitulado “Resposta a um vigarista de Boston”, que narra uma contenda com o Jornalista José Colucci Jr sobre o famoso biólogo Richard Dawkins, duramente criticado por Olavo de Carvalho. Publicado em observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=286OFC002 , Observatório da Imprensa, tal texto de Colucci desencadeou um ácido debate que embora baseado em motivadores imprecisos, trouxe desenvolvimentos muito interessantes, ainda que Carvalho tenha nitidamente subestimado Dawkins como um nome de peso na Biologia atual. Olavo de Carvalho também publicou um síntese do mesmo tema, Criação e Evolução, no artigo “Evolução e mito”, publicado no Jornal da Tarde de 6 de maio de 2004.

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EVOLUÇÃO ÉTICA E REVOLUÇÃO BIOÉTICA

Apesar de ter se iniciado há 150 anos, a Revolução Darwiniana demorou quase metade deste tempo para se consolidar. Somente a partir da década de 1920 com a incorporação da genética na Teoria Sintética da Evolução, pode-se dizer que o Paradigma Evolutivo se estabeleceu em definitivo. Interessante é que a maior parte do transbordamento do conceito de Evolução para outras disciplinas ocorreu justamente quando este ainda não estava devidamente acabado, e ainda não tinha uma boa explicação para a transmissão hereditária.
A maior parte dos abusos das idéias Evolucionistas também são desta fase, ainda que tenham permanecido ainda algumas décadas só entrando em rápido declínio após a Segunda Guerra Mundial. O historiador da Ciência Hall Hellman corrobora a afirmação de Ronald L. Numbers 21 de que os excessos cometidos em nome da Evolução por parte de sociólogos, psicólogos, intelectuais e senso‑comum em geral precipitaram uma sobre reação dos setores conservadores. É muito curioso notar que boa parte da força dos movimentos anti-evolutivos vem não do Neodarwinismo ou do próprio conceito de Evolução Biológica em si, mas da confusão com idéias derivadas que não tem apoio algum do Paradigma.
Foi nessa época que foram feitas diversas abordagens pseudo evolucionistas que todos consideraríamos nitidamente anti-éticas na atualidade. Em especial no campo da bioética. O mesmo livro de evolução em questão no caso Scoppes refletia idéias comuns na época, apoiando esterilização compulsória de etnias desfavorecidas sob a alegação falaciosa de que estas eram menos “evoluídas” em termos físicos, quando não passavam de vítimas da segregação e discriminação. Defendia o argumento da superioridade da raça ariana, insustentável no sentido histórico e científico pelo menos. Usava-se também a sofrível confusão entre o melhor adaptado e o mais violento para legitimar posturas agressivas, como por sinal há quem faça até hoje, e toda uma sorte de equívocos e sofismas que fariam com que a reação anti-evolucionista fosse justíssima.
Espantosamente nenhum dos ataques anti-evolutivos da época teve como alvo essas grotescas distorções, principalmente quando derivados do conservadorismo cristão, os motivos pelos quais se combatia o evolucionismo eram simplesmente reduzidos na forçada associação entre Evolução e Ateísmo. Como impera em nossa sociedade a ilusão de que a Ética seja domínio da Religião, é extremamente comum associar-se o ateísmo com toda uma sorte de desvios de conduta, o que curiosamente não tem nenhum apoio em qualquer evidência real, visto que invariavelmente os delinqüentes e criminosos em geral não são ateus.
É uma lastimável ironia histórica que os resistentes à Revolução Biológica não tenham tido a digna causa de atacar os abusos cometidos no viés pseudo evolucionista. Se assim fosse, algumas tragédias, a começar pelo Holocausto, poderiam ter sido pelo menos atenuadas. Os religiosos teriam prestado um grande serviço à humanidade se tivessem denunciado em tempo os sofismas que misturavam conceitos científicos com vieses ideológicos.
Ao invés disso, deixaram todas essas faltas passar em branco, concentrando sua bateria de ataques justamente no que havia de realmente sólido, a idéia de ancestralidade comum e descendência humana de hominídeos primitivos. Somente após a Segunda Guerra Mundial, já na era do Criacionismo “Científico”, foi que os criacionistas passaram a fazer largo uso de acusações que relacionam o Paradigma Evolutivo ao delitos cometidos pelo seu trasbordamento descuidado.
Muitos defensores do Evolucionismo costumam negar tal relação, mas é um dado histórico que idéias de Spencer e do próprio Darwin foram usadas em estranhos coquetéis ideológicos que incluíam Nietzsche, Marx, Mao-Tsé Tung, Lênin, Hegel e etc, resultando em políticas no mínimo duvidosas. Como ocorre na maioria das revoluções, muitos dos contra-revolucionários o são não devido aos ideais revolucionários em si, mas aos abusos cometidos em seu nome. Analogamente podemos dizer que a Revolução Francesa foi um marco na história iluminista que culminou no mundo majoritariamente laico e eticamente inigualável de hoje, mas não se pode deixar de lamentar os excessos guilhotinescos cometidos no frenesi revolucionário.


5 de Fevereiro de 2008

O filósofo conservador brasileiro Olavo de Carvalho, apresenta com maestria um sistema explicativo para as correntes ideológicas do período contemporâneo. Embora eu não endosse completamente o texto, a seguinte citação me parece muito fértil:
"Todas as ideologias e movimentos de massa dos dois últimos séculos nasceram da Revolução Francesa. (...) substancialmente três: a liberal, interessada em consolidar novos direitos civis e políticos, a socialista, ambicionando estender a revolução ao campo econômico-social, a nacionalista, sonhando com um novo tipo de elo social que se substituísse à antiga lealdade dos súditos ao rei e acabando por encontrá-lo na "identidade nacional", no sentimento quase animista de união solidária fundada na unidade de raça, de língua, de cultura, de território. A síntese das três foi resumida no lema: Liberdade-Igualdade-Fraternidade."
A relevância desse tema se relaciona ao modo complexo como linhas de pensamento de confrontam, se mesclam e se separam no mundo atual. Essas três ideologias supra citadas muitas vezes se reforçaram e se auxiliaram, outras vezes se antagonizaram e se enfraqueceram.
Seu benefícios foram, respectivamente: No primeiro grupo, o liberalismo político, o livre comércio, a livre iniciativa, as liberdades civis etc; No segundo grupo, a redistribuição de renda, o sufrágio universal, a universalização do ensino, as oportunidades para os segmentos sociais desfavorecidos etc; No terceiro grupo, a identidade cultural, étnica, integração social, valores símbolicos e estéticos que se refletem nas artes e cultura em geral, e fornecem fundamento psicológico que orientam o indivíduo no mundo.
Seus malefícios foram, em suas formas mais extremas, respectivamente: No primeiro grupo, a selvageria financeira, concorrência desleal, cartéis e dumpings, crises econômicas, concentração de renda e exploração de mão de obra etc; No segundo grupo, o surgimento de movimentos revolucionários agressivos, padronização de pensamento e desvalorização do indivíduo em prol do coletivo, estado totalitários voltados para segmentos políticos ideológicos que se perdem na burocraria etc; No terceiro grupo, nacionalismo excessivo, sentimento de superioridade racial, estados totalitários voltados para grupos econômicos restritos a elites antigas, exacerbação do sentimento de integração nacional em detrimento da imagem de nações vizinhas etc.

Continua em ÉTICA E EVOLUÇÃO.

HELLMAN, Hal. Grandes Debates da Ciência: Dez das maiores contendas de todos os tempos. São Paulo. Editora UNESP. 1999