AS CAIXAS-PRETAS DE BEHE
Uma Crítica ao Livro A Caixa Preta de Darwin de Michael Behe
Marcus Valerio XR
Julho de 2006

Este texto é uma adaptação auto suficiente de um capítulo de minha monografia KOSMOS & TELOS. Ainda assim, é recomendável a leitura completa da monografia para uma visão muito mais ampla dos temas envolvidos.

Se pudesse ser demonstrada a existência de qualquer órgão complexo que não poderia ter sido formado por numerosas, sucessivas e ligeiras modificações, minha teoria desmoronaria por completo.

Charles Darwin1

Michael Behe ainda é o nome mais popular entre os adeptos do Design Inteligente, e seu conceito de Complexidade Irredutível, apresentado em sua obra A Caixa Preta de Darwin ainda é um argumento dos mais utilizados, visando atender ao critério de falsificação citado pelo próprio Darwin, logo acima. O objetivo deste texto adaptado é principalmente argumentar que apesar de sua originalidade, cabem as críticas que David Hume [1711-1776] fez em sua obra póstuma Diálogos Sobre a Religião Natural, que antecipa e refuta em mais de dois séculos as versões mais sofisticadas do Argumento do Desígnio, o que inclui o argumento de Behe.

Michael Behe declara, ao início de seu livro que, como todas as grandes idéias, a teoria de Darwin é simples e elegante 2. Talvez inspirado por essa noção, Behe apresentou seu conceito de uma forma também bastante simples, e pretensamente elegante. De fato cabe uma notável comparação entre os livros A Origem das Espécies, de Darwin, e A Caixa Preta de Darwin, de Behe. Ambos os livros tem em comum a característica de se basearem numa idéia central simples, que pode ser compreendida rapidamente por leitores cientificamente leigos, porém, exemplificam essa idéia com exaustivos exemplos encontrados no mundo natural, que abrangem a maior parte do livro, e de mais difícil assimilação a não-especialistas.

No entanto, se compararmos as teses centrais defendidas, é possível notar uma diferença abissal. A funcionalidade da idéia de Darwin não costuma ser, em si, posta em dúvida nem mesmo pela maioria dos criacionistas. Da mesma forma como a idéia central de William Paley em Natural Theology, o Argumento do Relógio, que enquanto alegoria não merece resistência significativa, e sim somente sua aplicação ao mundo natural. O Relógio de Paley e a Ratoeira de Behe são basicamente analogias, que enfrentam os mesmos problemas de fraca correlação apontadas por Hume. Ou seja, embora as idéias em si sejam coerentes, é muito discutível que possam ser relacionadas ao mundo natural.

A ratoeira é a ilustração central de Behe para explicar o conceito de Complexidade Irredutível, o que já apresenta em si uma dificuldade de correlação, pois enquanto os exemplos factuais de seu livro, como o sistema de coagulação do sangue, são extremamente complicados e envolvem de dezenas a centenas de componentes, a ratoeira envolve apenas cinco, sendo extremamente simples. Ou seja, Behe tenta ilustrar uma idéia que envolve alta complexidade por meio de uma idéia de alta simplicidade.

Para que não sejamos acusados de atacar a ilustração e não o seu conceito, que é o que pode ter sido injustamente feito contra Paley, faz-se necessária aqui a explicação do próprio Behe:

Com irredutivelmente complexo quero dizer um sistema único composto de várias partes compatíveis que interagem entre si e que contribuem para sua função básica, caso em que a remoção de uma das partes faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente. Um sistema irredutivelmente complexo não pode ser produzido diretamente ( isto é, pelo melhoramento contínuo da função inicial, que continua a atuar através do mesmo mecanismo ) mediante modificações leves, sucessivas, de um sistema precursor, porque qualquer precursor de um sistema irredutivelmente complexo ao qual falta uma parte é, por definição, não funcional. Um sistema biológico irredutivelmente complexo, se por acaso existir tal coisa, seria um fortíssimo desafio à evolução darwiniana. Uma vez que a seleção natural só pode escolher sistemas que já funcionam, então, se um sistema biológico não pudesse ser produzido de forma gradual, ele teria que surgir como uma unidade integrada, de uma única vez, para que a seleção natural tivesse algo com que trabalhar. Mesmo que um sistema seja irredutivelmente complexo (e, portanto, não possa ter sido produzido diretamente), não podemos excluir por completo a possibilidade de uma rota indireta tortuosa. Aumentando-se a complexidade de um sistema iteratuante, porém, cai bruscamente a possibilidade dessa rota indireta. E, à medida em que aumenta o número de sistemas biológicos irredutivelmente complexos, inexplicados, nossa confiança em que o critério de fracasso de Darwin tenha sido atingido sobe vertiginosamente para o máximo que a ciência permite. [página 48]

Mais adiante, ele estipula as condições para a identificação de um sistema como este:

O primeiro passo para determinar a complexidade irredutível consiste em especificar a função do sistema e todos os seus componentes. Um objeto irredutivelmente complexo será composto de várias partes, todas as quais contribuem para a função. A fim de evitar os problemas encontrados em objetos extremamente complexos (...) começarei com um exemplo mecânico simples: uma modesta ratoeira.[50]

Essa “simplicidade irredutível” da ratoeira de Behe é, então, descrita em partes:

1) uma tábua lisa de madeira que serve como base; 2) um martelo (precursor) de metal, que realiza o trabalho de esmagar o ratinho; 3) uma mola com extremidades alongadas que faz pressão contra a tábua e o martelo quando a ratoeira é armada; 4) uma trava reversível, que dispara quando nela é aplicada leve pressão; e 5) uma barra de metal ligada à trava e que prende o martelo quando a ratoeira é armada.[50-51]

Logo em seguida, Behe apresenta outra condição para seu conceito:

O segundo passo para determinar se um sistema é irredutivelmente complexo consiste em perguntar se todos os componentes são necessários à função. Nesse exemplo, a resposta, claro, é sim.[51]

Mas o critério conclusivo para determinação da complexidade irredutível, talvez seja o mais relevante, visto que fica aqui explicitada de forma ainda mais evidente a importância da função:

A fim de compreender bem a conclusão de que um sistema é irredutivelmente complexo, e conseguinte, não tem precursores funcionais, precisamos fazer uma distinção entre precursor físico e precursor conceitual.[51]

E então Behe admite que não basta que uma mesma, ou similar, função, interligue dois sistemas, mas sim que haja uma ligação material. Uma ratoeira pode ser implementada de diversas formas, por materiais diferentes, mas não haveria um precursor material da ratoeira funcionalmente válido porque este deveria ter alguma das partes a menos. E exemplifica:

A bicicleta, portanto, pode ser uma precursora conceitual da motocicleta, mas não de natureza física. A evolução darwiniana requer precursores físicos.[53]

É então que podemos invocar Hume para julgar a validade da analogia de Behe, e de imediato já vemos que há uma larga distância entre os exemplos usados para ilustrar o conceito de complexidade irredutível, e os sistemas biológicos. Além de serem constituídos de materiais radicalmente diferentes, somente os sistemas biológicos possuem a propriedade de se reproduzir.

É também importante notar uma tensão entre esta afirmação de Behe sobre a importância da precursão material, que está no cerne de seu conceito, com outra afirmação que ele faz a respeito de Hume, acusando-o de considerar erroneamente a importância de detalhes materiais. 3.

Notemos então que, pelos critérios de Behe, um sistema será tido como irredutivelmente complexo:

1) se a função de um sistema e suas partes forem claramente conhecidas e;
2) se nenhuma de suas partes puder ser removida sem prejudicar seu funcionamento.

Mas para que isso seja aplicável no campo biológico, tais critérios não parecem suficientes. Encontrar um sistema irredutivelmente complexo a ponto de inviabilizar seu surgimento pela evolução darwiniana exigiria também que:

3) o sistema e sua função fossem vitais à sobrevivência e sucesso reprodutivo do organismo;
4) essa função não pudesse ser implementada por nenhum outro sistema.

Caso contrário, o organismo poderia sobreviver com uma outra estrutura desempenhando a função e então, após o surgimento de uma função similar, abandonar o sistema anterior. E mesmo com tudo isso o próprio Behe admite que a detecção de estruturas biológicas irredutivelmente complexas não seria por si só um inviabilizante da evolução darwiniana, mas sim reduziria sua probabilidade.

Isso nos leva de imediato a uma imensa distância entre as idéias de Darwin e de Behe. A de Darwin não necessita de uma analogia com estruturas não biológicas e se aplica exclusivamente aos sistemas vivos, que produzem descendentes. O conceito de Behe, entretanto, pode ser aplicado em diversos outros setores e é especialmente descrito em estruturas não vivas e incapazes de produzir descendentes.

Fica lançada a suspeita de que o conceito de Behe seja frágil demais para ser levado adiante, diferente do poderoso conceito darwiniano. Não parece possível derrubar o conceito de Darwin em si, como um construto racional, visto que a relação entre hereditariedade, variação e seleção funciona como uma fórmula simples, por outro lado, o de Behe tem grandes vulnerabilidades.

A primeira vulnerabilidade que podemos apontar é que o conceito é, em princípio, feito sob medida para se opor à evolução, e não uma descoberta que tenha se dado mediante o estudo sistemático da natureza, e que tenha necessitado de uma teoria explicativa. Voltando à definição inicial de Behe, um sistema irredutivelmente complexo é nada menos que um sistema que não possa ser explicado pela seleção natural. Sendo assim, parece nítido que tal conceito foi encomendado como um opositor prévio ao neodarwinismo. Em termos epistemológicos que valoram a origem de uma idéia, isso tende a ser visto com desconfiança.

Logo em seguida, Behe declara que um sistema só pode ser selecionado caso já funcione, o que parece ir contra toda uma série de evidências da natureza, onde abundam sistemas não funcionais ou ao menos de função desconhecida, mas que continuam sendo poupados pela seleção natural, que elimina de fato um sistema prejudicial, não um sistema inerte. Vários organismos possuem órgãos vestigiais que podem ser facilmente dispensados, como as amídalas, os sisos, o apêndice, a quase totalidade dos pêlos do corpo humano ou ao menos alguns dedos do pé. E ainda que os exemplos de Behe sejam do campo bioquímico, temos vastos exemplos de estruturas que se perpetuam mesmo sem nenhuma função, como a maior parte do ADN. Ou seja, mesmo que um sistema não funcione, não necessariamente ele será excluído pela seleção natural. Por isso é necessário incorporar a condição de que a função deste sistema seja essencialmente vital para sustentar a tese de que a complexidade irredutível inviabiliza a evolução darwiniana.

O primeiro critério de Behe para determinação da complexidade irredutível é especialmente sensível a Hume, pois exige que tenhamos conhecimento claro e bastante específico sobre a função e todas as partes do sistema. Porém, Hume perguntaria: que sistemas podemos dar por suficientemente conhecidos a ponto de estarmos seguros de uma conclusão tão forte? Nos três exemplos mais detalhadamente explicados por Behe em seu livro, ele admite que nosso conhecimento sobre os mesmos não é completo. Ao descrever o fascinante sistema “motorizado” de propulsão de bactérias mediante o cílio flagelado, por sinal um sistema por si só capaz de desencadear espanto mesmo num leigo, Behe coloca:

Os requisitos de um motor baseado em tal princípio são muito complexos e estão sendo objeto de pesquisa ativa. Muitos modelos foram sugeridos para o motor, nenhum deles simples.[78]

Logo adiante, Behe enfatiza o fato de que a literatura científica é ausente de artigos que tentem explicar a evolução de um sistema tão espetacular. No entanto, é de se questionar se poderíamos esperar outra coisa de algo para o qual, como o próprio Behe deixa claro em várias ocasiões, ainda estamos longe de compreender totalmente.

O segundo exemplo é o sistema de coagulação do sangue, onde talvez, mais do que nunca, Behe parece um prato cheio para as críticas de Hume. Nesse sistema estão presentes dezenas de proteínas e subsistemas que ativam o processo de coagulação que, além de não serem total e definitivamente compreendidos, apresentam uma característica curiosa e anômala, apenas parcialmente explorada pelo próprio autor, mas que dá margem a um ataque aparentemente devastador contra a idéia de um design “inteligente”.

Behe usa como ilustração certas máquinas famosas em desenhos animados que têm como peculiaridade uma alta e desnecessária complexidade, porém uma função extremamente simples e tola. Trata-se dos hilários mecanismos onde uma sequência interminável de eventos tem como resultado causar um golpe irônico e perverso contra algum personagem cartunesco. Como exemplo, o galo que ao tropeçar numa corda aciona um ventilador que impulsiona um barquinho que causa uma sequência de queda de dominós, que acendem uma vela que queima um corda que deixa cair um martelo e etc, até que finalmente uma bigorna lhe atinja a cabeça.

É evidente que um sistema desses foi idealizado para ser cômico, não prático, e não seria o que consideramos resultado de um planejamento pragmaticamente eficiente. Curiosamente, no livro de Behe, o sistema de coagulação sanguíneo é frequentemente comparado a essas máquinas espalhafatosas, alavancando uma série imensa de sistemas bioquímicos ao menos aparentemente excessivos. De fato, fica claro que poderia ser implementado um sistema muitíssimo mais simples e eficiente. Ao fazer tais comparações, Behe destaca o altíssimo nível de sincronismo necessário para que uma máquina tão confusa funcione, mas parece se esquecer que isso é exatamente o contrário do que esperaríamos de um design inteligente. Por outro lado, se vista mediante os conceitos evolutivos, fica bastante evidente porque tal complexidade desnecessária pode ocorrer, pois a evolução, como disse o famoso biólogo de Oxford Richard Dawkins, é um processo cego, não tem em vista uma finalidade, e portanto produz uma excessiva quantidade de elementos descartáveis.

Hume poderia dizer que isso seria resultado de um design incompetente, algo que afastaria o planejador da intenção evidentemente reverencial do defensor teísta, e assim, além de favorecer a idéia de uma evolução sem qualquer intenção, o que justificaria tamanho desperdício de recursos, só seria possível favorecer a idéia de um planejamento bastante ineficiente, ou seja, não um Deus, mas no máximo um Demiurgo. Mas Behe não está desatento a contra argumentos como esse, tratando de alguns mais adiante em seu livro 4, curiosamente, todavia, ele utiliza a mesma noção anterior de que ainda não temos conhecimento suficiente das coisas para saber se de fato tais características são mesmo indesejáveis ou se não possuem alguma função oculta.

Por fim, o exemplo final de Behe, o da síntese de proteínas, volta à questão de nosso limitado conhecimento sobre o assunto, além do que ele próprio admite que não há uma barreira absoluta que impediria a evolução de construir tais sistemas, mas apenas que as probabilidades de erro seriam muito grandes 5.

Além de tudo isso, Behe ainda incorre no mesmo erro que imputou à ciência evolucionista, e isso exige uma melhor explicação do significado do título de seu livro. Como “caixa preta”, Behe entende um núcleo de mistério, aquele objeto familiar que sabemos para que serve, e que por vezes utilizamos, mas que não sabemos como funciona. A caixa-preta de Darwin em questão seria a bioquímica, um reduto que era inacessível à época da revolução biológica, mas que agora, desvelada, coloca um desafio aparentemente terminal à mesma.

Não é exatamente o mesmo sentido no qual o mesmo termo é usado em língua portuguesa, pois também conhecemos como caixas-pretas, certos dispositivos que registram o histórico operacional de certos veículos, em especial aviões, e cujo funcionamento evidentemente nos é conhecido 6 . E é, nesse sentido, que emprestei ao título deste capítulo o termo “caixas-pretas”, que seriam as linhas de pensamento em sua obra que “monitorando” sua argumentação, podem nos revelar informações interessantes sobre suas pretensões científicas e filosóficas.

Behe afirma que, no passado, acreditava-se que a base da vida era simples 7, e somente esse engano permitiu que uma teoria como a evolutiva pudesse ir tão longe. Agora, com as descobertas recentes, teria sido desvendado um horizonte novo que exige um novo paradigma explicativo, e em várias ocasiões Behe ao menos sugere que estamos num estágio relativamente terminal de conhecimento 8.

Assim, Behe incorre no mesmo engano que imputa aos cientistas do século XIX, subestimar o que ainda não sabemos sobre a vida, que poderá vir a ter grande impacto diante de nossas possibilidade de progresso científico. Ele argumenta, para o incômodo de qualquer cético, como se já estivéssemos definitivamente autorizados a uma constatação decisiva. Mas que surpresas ainda podem nos ser reveladas no futuro? E se descobrirmos, no que hoje ainda é uma caixa-preta, um sistema claro de auto-organização espontânea? De certa forma, a crítica humeana pode ser trazida de volta praticamente sem alterações.

Por outro lado, e por fim, ao longo de todo o livro existe uma estrutura de sustentação argumentativa que está presente a cada passo dado, e que pode ser resumida na expressão “mas como exatamente?” Behe insiste em que o evolucionismo não tem explicações consistentes basicamente porque não pode fazer indefinidamente uma regressão explicativa rumo às menores estruturas concebíveis. Ou seja, porque não podemos explicar algo no mais ínfimo do mais ínfimo dos detalhes, então toda a explicação é suspeita. Ou, por suas próprias palavras:

A bioquímica, portanto lança um desafio liliputiano a Darwin. A anatomia, nos termos mais simples, é irrelevante para se descobrir se a evolução poderia ou não ocorrer no nível molecular. O mesmo acontece com o registro fóssil. Já não importa se há imensos vazios no registro fóssil ou se ele é tão contínuo como a lista dos presidentes norte-americanos. E se há buracos, não importa se podem ser explicados plausivelmente. O registro fóssil nada tem a nos dizer sobre se as interações da 11-cis-retinal com a rodopsina, a transducina ou a fosfodiesterase, poderiam ou não ter se desenvolvido passo a passo. Também não importam os padrões da biogeografia nem o da biologia das populações; tampouco as explicações tradicionais da teoria evolutiva sobre órgãos rudimentares ou abundância de espécies. [32]

Como pode ser visto acima, o que Behe faz nesse parágrafo é pura e simplesmente afirmar que todas as evidências acumuladas por Darwin não são suficientes para justificar a explicação evolutiva porque teríamos que explicar não somente no nível macro e global, mas também no nível micro e específico, e ao longo de seu livro essa afirmação é freqüentemente feita, de que se não explicamos o “exatamente como” algo é feito, então não o explicamos.

O problema é que essa alegação destruiria todas as explicações, porque virtualmente nada poderia ser explicado se exigirmos um nível interminável de detalhamento. Enquanto o bom senso nos diz que afirmar que dirigi um carro até a universidade explica, ao menos em alguns casos, como cheguei lá, o raciocínio de Behe exigiria que eu explicasse exatamente como dirigi esse carro, e ao explicar o método de direção, exigiria que tipos específicos de movimentos meus braços e minhas pernas fizeram, e exatamente como são as reações químicas que movem meus músculos, e como se dá a explosão da gasolina no motor no nível subatômico, fotônico, quárkico, quântico e etc.

Embora seja justa uma reivindicação pelo detalhamento, afinal esta é uma característica central da ciência, isso não significa que uma explicação possa ser descartada porque não se explica especificamente um detalhe num grau sobre o qual ainda pouco sabemos. Se não contestarmos essa falácia de completude, estaremos condenados a um ceticismo que superaria o de Hume, pois a possibilidade de que jamais alcancemos explicações terminais sobre natureza é bastante provável.

Ademais, o mérito de um teoria explicativa está principalmente na funcionalidade de sua explicação, e não no conhecimento dos detalhes materiais. Como exemplo, a Teoria da Gravitação Newtoniana explica funcionalmente a gravidade sem ter qualquer conhecimento de sua específica constituição material, que por sinal continua sendo, até hoje, uma caixa preta. [Adendo em virtude do relevante comentário do professor Paulo Abrantes a respeito da importância funcional da explicação científica.]

A acusação de Behe, no entanto, poderia ser considerada justa se ele estivesse propondo um novo modelo explicativo que funcionasse. No entanto, ele em momento algum faz isso. Em todo o seu livro é completamente ausente um modelo explicativo, estando presente apenas a idéia de que se deveria pressupor um planejador inteligente.

Há um elefante em uma sala cheia de cientistas que tentam explicar o aparecimento da vida. O elefante é rotulado de “planejamento inteligente”. Para uma pessoa que não se sente obrigada a restringir sua busca a causas não-inteligentes, a conclusão óbvia é que muitos sistemas bioquímicos foram planejados. Eles foram desenhados não por leis da natureza, pelo acaso ou pela necessidade; na verdade, foram planejados. O planejador sabia que aparência os sistemas teriam quando completos, e tomou medidas para torna-los realidade em seguida. A vida na Terra, em seu nível mais fundamental, em seus componentes mais importantes, é produto de atividade inteligente.[195]

No entanto, apesar de defender essa premissa de um modo tão forte, Behe se recusa a aventurar qualquer conjectura sobre esse planejador, e mesmo que tome o cuidado de, no original em inglês, não se referir ao planejador como he, ele curiosamente sempre o trata no singular, e Hume também questionou porque não poderíamos considerar um universo produzido por diversas deidades. Um dos motivos de Behe é até justificável, pois se temos como saber com altíssimo grau de probabilidade quando alguma coisa foi resultado de um arranjo intencional das partes, conforme definição do próprio Behe, de fato não temos como saber com certeza se algo não o foi, pois uma estrutura aparentemente caótica e desorganizada pode ter sido intencionalmente arranjada. Enquanto vemos um quadro de Caravaggio e sabemos que é obra intencional, muitos quadros de artistas abstratos modernos podem se parecer com o resultado da mistura aleatória de cores após um desastre num depósito de tintas.

O próprio Behe admite que uma evidência de planejamento sempre será probabilística, mas adiciona ao mesmo tempo uma hipótese claramente infalseável. Não haveria teste capaz de demonstrar uma não existência de design na natureza, não enquanto estivermos totalmente abertos a qualquer tipo de designer, pois, como disse Hume, poderíamos ter como planejador um ser brincalhão, incompetente ou idiota.

Diferentemente do neodarwinismo, que tem critérios falsificatórios claros, além de impossível de ser testada, a hipótese de um planejador incógnito é completamente inútil para ajudar a explicar qualquer coisa. Para Behe, não é preciso ter um candidato ao papel de planejador, mas sim, apenas reconhecer o planejamento 9, mas que espécie de progresso explicativo isso nos daria?

Em momento algum Behe fornece luz alguma sobre como a pressuposição de design ajudaria a explicar “exatamente como” a vida evoluiu. Isso não nos faria entender melhor o motor bioquímico do cílio flagelado dos protozoários, não nos esclareceria nada sobre a coagulação sanguínea nem traria qualquer avanço no campo da genética. A admissão em larga escala de um planejamento inteligente não mudaria uma vírgula no nosso conhecimento sobre a natureza.

Mas, enfim, na rota final de seu livro, Behe irá listar por que há tanta resistência à idéia de um planejamento inteligente, e é exatamente aí que entrará em William Paley e David Hume, e finalmente aponta então qual é o maior motivo para tal resistência: Razões estritamente filosóficas, a priori.

A quarta e mais poderosa razão da relutância da ciência em aceitar uma teoria de planejamento inteligente baseia-se também em considerações filosóficas. Muitas pessoas, inclusive importantes e renomados cientistas, simplesmente não querem que exista qualquer outra coisa além da natureza. Não querem que um ser sobrenatural afete a natureza, por mais curta ou construtiva que essa intervenção tenha sido. Em outras palavras, tal como os criacionistas da vertente Terra jovem, eles assumiram um compromisso filosófico a priori com a ciência, que restringe os tipos de explicações que aceitariam sobre o mundo físico.[245]

De fato, essa conclusão final de Behe é muitíssimo congruente com a principal tese sustentada na minha dissertação de onde este texto foi retirado e adaptado. O próprio livro A Caixa-Preta de Darwin pode ser visto como, afinal, apenas mais uma versão sofisticada do argumento do desígnio, um Paley contemporâneo, com a vantagem adicional de ter trocado uma certeza total por uma alta probabilidade.

As “caixas-pretas” do livro de Behe nos revelam uma tentativa de fornecer motivos que convençam não a adoção de um novo modelo de pesquisa, de um novo paradigma ou qualquer forma de teoria, visto que nenhuma é apresentada, mas no fim, como apenas um apelo para que cientistas de todo o mundo admitam que a vida é resultado de intencionalidade. Era esse o objetivo de Paley, que de forma franca também não tinha pretensão alguma de contribuir com o conhecimento científico, mas sim, somente apresentar um novo argumento do desígnio.

Por outro lado, não é possível negar que de fato existem pessoas que utilizam a ciência, e o evolucionismo, como um defensor da tese contrária. Embora não haja nenhum compromisso filosófico fundamental entre a ciência e o ateísmo, há muitos ateus que tentam comprometê-la, o próprio Richard Dawkins é um exemplo típico.

Porém, Behe parece não se dar conta de que ele também assumiu um compromisso a priori, visto que apresenta uma posição forte sobre o tema. Qualquer defensor da intencionalidade ou não-intencionalidade necessariamente terá um compromisso primário a não ser que seja capaz de demonstrar de forma inequívoca a validade de sua posição.

Correm muitas suspeitas, com evidências bastante fortes, discutidas em ÉTICA e EVOLUÇÃO, e em DI é Criacionismo?, de que todo o movimento do design, incluindo a obra de Behe, seja resultado de uma ação orquestrada por linhas conservadoras de pensamento que temem a diminuição do teísmo em nossa sociedade. Isso, lamentavelmente, deporia contra a honestidade intelectual dos DIstas. Ainda assim, isso não significa que eles não tenham argumentos a serem considerados, ainda que apenas do ponto de vista filosófico.

Não pretendo, aqui, entrar no polêmico mérito de se deveria haver lugar para o design inteligente ou criacionismo nas escolas, apesar de que minha opinião seja obviamente contrária a tais iniciativas. A não ser, é claro, se elas assumirem suas características puramente religiosas ou no máximo filosóficas, visto que todo o livro de Behe nada mais é do que um tratado para um novo argumento do desígnio.

E é nesse sentido que a obra de Behe merece atenção, afinal os argumentos a respeito da existência de Deus provavelmente sempre estarão presentes, e devem ficar cada vez mais sofisticados. A filosofia não pode negligenciar esse diálogo, principalmente quando políticas educacionais tem sido feitas em cima de conceitos que em geral carecem de assistência filosófica.


1. DARWIN, Charles, [1872] Origins of Species, 6a ed. [1988], New York University Press, p. 154.

2. A Caixa Preta de Darwin, Página 13.

3. KOSMOS & TELOS, página 17.

4. A Caixa Preta de Darwin, Página 227.

5. A Caixa Preta de Darwin, Página 147.

6. Dicionário Houaiss, verbete caixa-preta.

7. A Caixa Preta de Darwin, página 8. Esse passado em questão inclui o século XIX.

8. A Caixa Preta de Darwin, é dividido em 3 partes, sendo a primeira intitulada A Caixa é Aberta, onde abundam afirmações como as seguintes:

A última caixa preta restante era a célula, que foi aberta e revelou moléculas – os alicerces da natureza. Mais baixo não podemos descer.[páginas 23]

A bioquímica levou a teoria da Darwin aos seus últimos limites. Fez isso ao abrir a última caixa preta, a célula, permitindo que compreendêssemos como a vida funciona. [página 25]

Para Darwin a visão era uma caixa preta, mas, após o árduo trabalho cumulativo de inúmeros bioquímicos, estamos nos aproximando agora das respostas sobre o olho. [página 28]

9. A Caixa Preta de Darwin, página 199

Marcus Valerio XR
Julho de 2006

Ética e Evolução,
Existe Relação?
A Complexidade Irredutível
e o Argumento do Relógio


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